Olhares em números

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O sublime e o infame na união do feminino e masculino em "Perfume: a história de um assassino".

*continuação ao comentário crítico publicado logo abaixo.
Seguimos abaixo com uma breve leitura da narrativa de Perfume, buscando principalmente evidenciar a possibilidade de interpretação da trama como uma alegoria da relação do ser humano com os arquétipos femininos e masculinos que constituem sua personalidade e sua ontologia enquanto ser socializável.
A natureza humana, comum a homens e mulheres, comporta, em sua constituição psíquica, características arquetípicas relacionadas ao que chamamos de feminilidade e masculinidade. Segundo o estudioso de mitologia Joseph Campbell, o feminino guarda virtudes e perigos como: a maternidade, a sedução, a malícia, a vingança, a irracionalidade, a beleza, o encanto, a sensibilidade, etc.; enquanto o masculino abarca: a belicosidade, a proteção, a força, a justiça cruel ou complacente, o egoísmo, a racionalidade lúcida, a criatividade, a frigidez e a insensibilidade, a moralidade sóbria, etc.[1] Esses dois princípios, feminino e masculino, inerentes à estrutura da personalidade humana devem permanecer em equilíbrio, tanto no convívio do ser humano individual quanto coletivo. No entanto, desde séculos antes de Cristo, o masculino se sobrepôs ao feminino, subjulgando-o e marginalizando-o. O homem, assumindo plenamente os caracteres masculinos e reprimindo os femininos, impôs a submissão à mulher e a criança, cujo vínculo com o feminino é mais recente e intenso.
Na narrativa de Perfume, presenciamos o nascimento de uma criança em pleno mercado público, espaço onde desfila a miséria de uma sociedade estratificada e mesquinha. A podridão e a insalubridade do lugar despertam o bebê, cujo olfato mostra-se aguçadíssimo. Destituído do vínculo materno de forma brutal, a criança, ao chorar, acaba sendo responsável pela morte da própria mãe. Tal morte recai sobre uma mulher que se negou a assumir um dos arquétipos principais do feminino: a maternidade. O olfato apurado faz de Jean-Baptiste Grenouille um ser humano ávido pelos aromas do mundo e com profundo discernimento dos componentes da realidade que o cerca: uma Paris setecentista, berço do recente Iluminismo, onde se encontra o microcosmo da civilização européia da época e imperam plenamente os valores masculinos de poder e racionalidade sóbria e moralizadora.
As primeiras mortes que permeiam a trajetória do protagonista recaem sob personagens que de certa forma ocupam estratos sociais marcados por traços masculinos, como a frieza, a violência, o egoísmo e a insensibilidade, tornando os episódios indícios da perniciosidade do masculino potencializado no meio social.
Grenouille, em certo momento de sua formação, percebe que sente mais do que suas palavras podem exprimir. Tal característica não é tão extraordinária, uma vez que todos nós sentimos muito mais do que podemos expressar linguisticamente (uma das funções da poética na linguagem é justamente oferecer a possibilidade de significar os sentimentos).
Esta sua qualidade natural, porém, irá levá-lo a identificar o singular aroma de uma jovem, e é a partir da lindíssima e trágica cena, em que Grenouille, sôfrego, tenta absorver o odor efêmero do corpo nu da jovem já morta, que se revela um dos principais motivos dramáticos que irá conduzir a personagem até o desfecho da trama: a tentativa de preservar o aroma feminino.
Jean-Baptiste empreende uma busca particular por algo que percebe tão sublime quanto efêmero. Podemos pensar em Grenouille como um rapaz que busca possuir o que lhe falta, o que tanto deseja é como algo que lhe foi tirado. Sob uma perspectiva freudiana, temos uma personagem que sofre com a inversão do complexo de castração. Um homem, cujo feminino se atrofiou por influência da brutalidade do meio, e que procura inconscientemente possuir este feminino perdido.
Em um de seus primeiros contatos com ricos perfumes franceses, Grenouille conhece o famoso perfume Amor e psique. E, uma vez sentindo-o por toda a cidade, questiona sua qualidade, dizendo não ser um perfume muito bom.
Eros e Psique são personagens da mitologia grega, que personificam respectivamente: o “amor”, em sua extensão de paixão ardente e desejante, e a “alma”, no sentido grego de “sopro de vida”, representando também o princípio de alma, a qualidade da vida que se transforma. A estória de Eros e psique aparece pela primeira vez na comédia O Asno de ouro, de Apuleio, e narra a trajetória de um amor impossível, entre um deus e uma jovem mortal. Psique era uma donzela tão bela que foi capaz de despertar a fúria da deusa Vênus, que manda seu filho Eros (ou Cupido) castigar a jovem inocente. No entanto, Eros acaba apaixonando-se por Psique, e utilizando-se de um estratagema, leva-a para sua morada, a fim de desposá-la em segredo. Nem mesmo Psique sabia quem era seu marido, e num rompante de curiosidade, traindo a confiança de Eros, transgride a interdição que lhe impusera o belo esposo, descobrindo sua imortal beleza. Psique é abandonada por Eros, e passa por várias provas para reencontrar-se com seu amado e conseguir a imortalidade. Essa estória, de Eros e Psique, dramatiza a possibilidade de transcendência da alma quando impulsionada pelo sentimento do amor. Somente sob a influência do amor imortal, Psique conseguiu superar seus imperfeições mortais.
Ao reformular o perfume criado pelo artista (assim são nomeados os grandes perfumistas da época), Grenouille questiona a própria natureza falha e imperfeita da natureza humana, negando-a, e oferecendo à sociedade da época inebriantes perfumes, que atuam eficazmente como um simulacro de sensações aromáticas, que se originam da combinação de essências naturais como folhas e rosas, que se deixam morrer conservando o aroma intacto.
A grande “virada” na narrativa de Perfume dá-se a partir da primeira essência aromática extraída do corpo de uma prostituta. O aroma exalado pelos corpos femininos pode ser capaz de serenar o espírito mais exaltado e subordinar a alma mais racional. O perfume produzido com o aroma das jovens donzelas oferece a Jean-Baptiste Grenouille o poder de dominar os homens. A forma metódica com que retira o odor das jovens, semelhante a uma espécie de ritual pagão, revela certo culto ao corpo feminino, cuja nudez mantém-se velada em magníficos enquadramentos que retomam o tratamento dado a representação feminina nos quadros renascentistas, e que aludem à extraordinária beleza venusiana.
As vítimas de Grenouille denunciam a submissão do feminino nas diversas estruturas e instituições sociais: a prostituta; a noviça, encontrada morta, despida de seus hábitos, logo após o discurso inflamado de um bispo; camponesas e moças de baixa classe; e donzelas de classe alta, forçadas a casamentos arranjados e submetidas a um patriarcalismo despótico, lembrando também, que a proteção em excesso é característica de um masculino potencializado.
Jean-Baptiste, quando inquirido sobre o motivo de ter matado as jovens, revela ter-lo feito porque fora necessário. Assumindo pra si o peso de uma masculinidade exacerbada e confusa, Grenouille se apresenta como profeta de um sagrado feminino, da feminilidade ausente e negada pelo homem e pela sociedade dos homens. É sagrado o que é transcendente, avidamente esperado e cultuado pelos seres humanos. O desfecho da narrativa traz uma paradoxal cena final: numa praça do séc. XVIII, onde eram feitas execuções publicas de condenados, espaço de dor, flagelação e morte, Grenouille oferece aos homens o sacralizado aroma colido de belas jovens, o feminino ausente como algo imanente aos homens é ritualisticamente reincorporado por todos, homens e mulheres; a barbárie se esvai, e os extremos de um paradoxo se dialogam, temos o sublime e o infame despolarizados, a orgia concretiza a transcendência humana por meio do amor. Por um arrebatador instante de vida, os habitantes daquela cidade comungam a união entre o masculino e o feminino.
Após uma longa trajetória de experiências, Grenouille compreende que jamais experimentou a união a qual observou naquela praça. A perda de seu próprio odor e a inconsciente busca pelo odor da jovem ruiva, que encontrara numa noite, significam, para a construção da personagem do jovem perfumista, a incapacidade de amar e ser amado. E em um triste desfecho, em que se chocam extremos da natureza humana, Grenouille cobrindo-se do feminino, é consumido por um povo assolado pela miséria do mundo. Seu sacrifício, algo que faz unicamente por amor, assim como Psique, traduz o encontrou ontológico do feminino e masculino através de uma alma transcendente.



[1] CAMPBELL, J. Creative Mythology. In: JOHNSON, Robert. A. Feminilidade: Perdida e reconquistada. São Paulo: Mercuryo, 1991. p. 11.

Comentário crítico de "Perfume - a história de um assassino"


Perfume – a história de um assassino, dirigido pelo alemão Tom Tykwer (Corra Lola corra) e lançado em 2006, narra, com uma grandiloqüência formal fortemente pautada em suas origens literárias, a trajetória fabular de um jovem aprendiz de perfumista. Desde seu precário nascimento, em plena agitação matutina de um fétido mercado de peixes parisiense, acompanhamos a impressionante incursão de Jean-Baptiste Grenouille pelos repugnantes estratos da sociedade francesa do século XVIII. Dotado de apuradíssimo olfato e impressionante resistência física, Grenouille sobrevive milagrosamente aos primeiros anos de vida. Após ser desprezado pela mãe, mantido em um orfanato até certa idade, e depois vendido como força de trabalho a um insalubre curtume da cidade, Grenouille desperta o interesse de um decadente perfumista local, que, fascinado por seu talento em combinar aromas e compor indescritíveis essências, o contrata como aprendiz, comprometendo-se a ensiná-lo a preservar o aroma das coisas do mundo. O jovem mostra-se obstinado em apreender todos os aromas que o envolvem. Com sua extraordinária e inata capacidade olfativa, Grenouille é capaz de diferenciar todos os odores que percorrem as ruelas de Paris, e num lance do acaso, acaba encontrando o aroma de uma jovem ruiva que o inebria. Matando-a sem intenção, descobre que o extasiante aroma da jovem esvai-se de seu corpo sem vida. A partir do incidente e da influência de seu tutor, Grenouille empreende uma obstinada busca pela formulação de um perfume capaz de reunir 13 aromas de belas donzelas, dando início uma onda de assassinatos sem precedentes em uma pacata cidade francesa.

Com impressionante riqueza de detalhes e preciosismo estético, Tom Tykwer faz uma brilhante adaptação do trágico e surpreendente romance homônimo do escritor germânico Patrick Süskind. Em uma produção caríssima para os moldes europeus (mais de 65 milhões de euros), Tykwer compõe uma impecável sinestesia visual, abusando de planos-detalhes e da brilhante direção de arte, eficazes em mergulhar o espectador nas sensações olfativas do protagonista. Os contrastes de luz e sombra e o tratamento “renascentista” das cores presentes na rica fotografia de Frank Griebe convidam-nos a apurar um dos sentidos mais caros para a recepção de uma obra cinematográfica: a visão. E assim, somos enojados por ágeis planos-detalhes que realçam tanto a natureza infame dos ambientes fétidos de uma baixa Paris, com suas ruelas e edificações rudimentares e seus detalhados espaços urbanos que beiram ao escatológico; e também inebriados pela tomadas lentas e contemplativas, realçando o caráter quase sublime das cenas em que os aromas de rosas e de belas donzelas cruzam o olfato do jovem perfumista. Com atuações mais técnicas do que intensas, porém eficazes, e figurino impecavelmente realista e refinado, principalmente na composição dos farrapos encardidos dos miseráveis parisienses, Perfume – a história de um assassino peca apenas no uso excessivo de uma trilha sonora bem composta, mas entediante depois de alguns intermináveis minutos.

domingo, 9 de agosto de 2009

Comentário Crítico: "Operação Valkyria"


“Esta história se baseia em fatos reais”, indica o letreiro, que abre o filme Operação Valkyria, estrelado pelo ator americano Tom Cruise. Com boa qualidade técnica e sem grandes tropeços dramáticos, Operação Valkyria mostra-se eficiente como mais um bom exemplar de gênero hollywoodiano, mas que, no entanto, não se sustenta facilmente como representação contundente de uma tragédia histórica.

O filme narra a formação e o destino de um dos principais levantes contra o governo nazista, organizado em plena Segunda Guerra Mundial. Num contexto de crescente sufocamento da resistência alemã por parte das tropas aliadas, oficiais de alta patente do exército alemão organizam e executam uma complexa operação para matar Adolf Hitler e assumir o poder do Estado militar alemão, prometendo cessar os confrontos armados e promover um acordo de paz com os países inimigos, evitando assim que mais alemães morram nos campos de batalha.
A atmosfera de conspiração e a dissimulada relação que se mantém entre os oficiais do III Reich levaram o diretor Bryan Singer (X-Men e Os Suspeitos) a lançar mão de eficientes planos-detalhes ao longo da projeção, sempre direcionando o olhar do espectador para peças-chave na montagem da conspiração, como uma caixa de bebidas, um documento importante, um telefone, uma vitrola, uma maleta e até mesmo um olho de vidro, que aparecem em vários planos fechados. Com um figurino bem cuidado e detalhista, oferecendo-se aos atores como excelente aparato para a composição das personagens, e com cenários/locações que privilegiaram a ambientação realista da trama, além de criarem espaços intimidativos, como os quartéis de comando, com seus inúmeros corredores, salas e portas que se assemelham a arriscados labirintos, Operação Valkyria apresenta primor técnico em boas tomadas internas e externas, com destaque para a cena na qual um oficial nada sobre uma enorme suástica, e a brilhante cena em que encontramos o coronel Stauffenberg sob as edificações de uma igreja alemã em ruínas, evidenciando a fé do povo e do próprio Stauffenberg posta em ruínas pela opressão da guerra. No entanto, mesmo com uma direção de arte competente, a fotografia não foge ao convencional do gênero, mantendo os tons opacos e a pouca luminosidade sempre presente em filmes que retratam este período. Destaque, porém, para a interessante edição de som, principalmente quando temos o barulho ensurdecedor das máquinas de escrever simulando o som de disparo de inúmeras metralhadoras, muito bem aplicada na transição de uma das seqüências do filme, e que funciona como um motivo de presságio para o que ocorrerá aos conspiradores: a execução frente a um pelotão.
Operação Valkyria é um filme claramente pautado na ação e na movimentação das personagens, cujas seqüências dramáticas aparecem pontuadas por inúmeras frases de efeito e discursos inflamados, comprometendo assim, a manutenção de diálogos sólidos e ricos de conteúdo, que poderiam apontar para os traços de personalidade e de ideologia de cada personagem, aprofundando a análise de seus comportamentos ao longo da trama, como verificamos nos excelentes “A Lista de Schindler” e “A Queda – as últimas horas de Hitler”.
Tendo em vista principalmente este último filme citado, “A Queda!”, cabe constatar que, para um filme pautado na ação das personagens e nas relações dramáticas que se mantém entre si, inexiste a preocupação com o desenvolvimento das nuanças de comportamento e moralidade latentes em cada personagem histórico retratado na trama. Tom Cruise, como Coronel Claus von Stauffenberg, veste uma personagem pouco explorada emocionalmente (mesmo nos momentos românticos e paternos), contribuindo apenas com sua semelhança física e sua interpretação incisiva e obstinada. A personagem de Adolf Hitler, interpretada por David Bamber não convence, tornando-se mero coadjuvante, sem força dramática, ficando anos-luz de distância da brilhante interpretação do execrável Führer de Bruno Ganz, em “A Queda!”. Seguem os outros atores/personagens do círculo de oficiais, que em cena não desenvolvem características biográficas singulares das personalidades reais retratadas ali. Têm-se um quadro de personagens unilaterais, algumas martirizadas (como o mocinho do bem que morre) e muitas outras saídas do gênero de espionagem política: o obstinado comandante, o idealista fiel, o delator dissimulado, o comparsa disfarçado, entre outros, revelando, juntamente com o fraco roteiro (de Christopher McQuarrie e Nathan Alexander), um dos pontos comprometedores para uma leitura política e histórica relevante do período retratado na película.
Apresentando durante os 110 minutos de projeção uma maior preocupação com os elementos técnicos que iriam contribuir para o retrato realista dos espaços e do contorno dos personagens abarcados pelo roteiro, Bryan Singer mostrou-se pouco experiente na condução de dramas históricos, não desenvolvendo as complexas personalidades dos envolvidos na fatídica operação, figuras reais e empenhadas numa causa nobre, que se colocou, porém, comprometedora e mortal.
Deixando de lado uma abordagem próxima do documental, em que prevalece a análise realista dos fatos e personalidades históricas, Operação Valkyria prioriza a manipulação das seqüências motivacionais do roteiro, construindo a atmosfera conspiratória e emergencial do filme a partir de tomadas curtas e planos detalhes, valorizados e bem aplicados, principalmente nos 30 minutos finais da projeção (quando acontecem as ações das quais realmente desconhecemos o desfecho), e que ditam uma dinamicidade quase inquietante à caótica tentativa de tomada do poder central em Berlim pelos oficiais revoltosos, após a morte “antecipada” do Führer.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Comentário Crítico: "Harry Potter e o enigma do príncipe"


Acredito que a bem-sucedida franquia cinematográfica Harry Potter chega, com este 6º filme, ao mesmo nível técnico e estético já alcançado pela brilhante franquia de mesmo gênero audiovisual: a trilogia O Senhor dos Anéis.Por AINDA não ter lido os livros de J. K. Rowling, abstenho-me de discutir os aspectos de adaptação da obra literária para o suporte cinematográfico. Pretendo privilegiar uma discussão sobre as características cinematográficas deste 6º filme, sendo estas originais e complementares à leitura da obra literária. Pautando-me, também, nos outros filmes da série, prefiro comentar a produção cinematográfica de Harry Potter independentemente de seus livros, obviamente porque não os li, mas pensando, também, que qualquer adaptação constitui a transcriação ou recriação original de um conteúdo temático utilizando-se de um novo suporte e todos seus artifícios. Ou seja, não vamos desconsiderar a Arte do Cinema, mesmo quando esta Arte toma conteúdos literários como suporte narrativo.
Assim como ocorreu com o 3º livro, o 3º filme da série, Harry Potter e o prisioneiro de Askaban, marcou uma mudança de postura dos realizadores, deixando de lado a abordagem quase infantil do mundo mágico de Harry Potter, vista nos dois primeiros filmes. Desde o filme dirigido pelo cineasta Alfonso Cuaron (E sua mãe também e Filhos da Esperança), a série tem se mostrado envolta por uma atmosfera fria e sombria, marcada pelos tons acinzentados das paisagens externas e pela névoa que espreita os arredores de Hogwarts; o clima de conspiração e temor tornou as ações das personagens mais urgentes e perigosas, obrigando os protagonistas a amadurecerem mais rapidamente, o que significa, para cada um dos heróis, enfrentar os próprios traumas, medos e anseios da infância e adolescência.Harry Potter e o enigma do príncipe marca o momento de maior maturidade desta nova postura. Consolidando um estilo próprio de composição cinematográfica, este 6º filme da série apresenta, em sua padronizada estrutura narrativa[1], uma contundente solidez e coesão no desenvolvidos das tramas centrais e, principalmente, na construção das personagens, o que se mostra um ponto forte deste 6º filme.O filme tem início com uma incrível seqüência de ação na qual alguns bruxos do lado negro, os temidos comensais da morte, saqueiam e destroem lojas do Beco Diagonal, incrustado no centro de uma metrópole “trouxa”, deixando para trás presságios da catástrofe que poderia se abater sobre o mundo “trouxa”, caso você-sabe-quem determinasse uma invasão maciça a esse mundo.A partir desta primeira seqüência, o filme desenvolve-se sempre surpreendendo pelo extremo apuro técnico em sua montagem e edição de efeitos especiais, e constrói seqüências de tirar o fôlego, como a “última” viagem de Dumbledere e o passeio destrutivo de Helena Bonhan “Belatriz” Carter pelo salão principal de Hogwarts, no último ato do filme. Com um estilo ágil de filmagem, acompanhamos a câmera sempre se esgueirando por entre os corredores da escola. Podemos apreciar planos muito bem construídos, que valorizam a disposição das personagens em cena e a primorosa direção de arte, que, por sua vez, se mostrou capaz de transpor para o espaço físico toda desordem e devastação próprias do momento de conflito entre as forças do Bem e do Mal (destaque para a colorida loja dos Weasley, em contraste com o que resta do Beco Diagonal; e os inúmeros artefatos misteriosos da Sala Precisa).A própria arquitetura da casa dos Weasley, os bairros londrinos e principalmente Hogwarts, com suas salas, pátios, paredes, portas e janelas, mostraram-se eficientes para a condução da narrativa, criando em muitos momentos, a partir de excelentes movimentações de câmera e de enquadramentos bem explorados, ricas metáforas para os conflitos psicológicos vivenciados pelas personagens. Alguns aspectos me chamaram particularmente a atenção: no primeiro momento em que Harry Potter vislumbra Gina, ela está no andar superior da casa dos Weasley, e a arquitetura da casa permite observar a forma de torre vista por Harry, com Gina lá encima (sim, estou pensando nos Contos de Fadas), se tornando ainda mais interessante uma vez que a relação entre os jovens se dá nesta questão de descoberta da sexualidade e de encantamento dos hormônios (atenção para a cena em que a “inocente” Gina se depara sozinha com um bruxo [lobisomem?], lembrei-me do lobo mau); podemos observar como as vidraças emolduram os casais apaixonados nas torres de Hogwarts; gostaria de destacar também os planos em que Draco Malfoy aparece solitário e marginal, e que produz uma tocante rima visual com a sempre rica metáfora do pássaro engaiolado[2], muito bem incorporada e motivada na composição narrativa do filme.Todos os planos e seqüências, em conjunto com o trabalho cenográfico, são pincelados na tela por uma primorosa direção de fotografia, que, como já mencionei, realça em tons de cinza os ambientes sombrios e inóspitos dos arredores de Hogwarts. As tonalidades frias ressaltam, com a chuva e a atmosfera nublada, a presença constante do Mal, e contrastam com os poucos lugares acolhedores para os protagonistas, como a quente e aconchegante casa dos Weasley e os quartos de Hogwarts.Assim como na trilogia O Senhor dos Anéis, aparece neste filme, ainda mais presente como um personagem secundário, um céu constantemente turbulento, e pontualmente composto por traços explícitos do Mal (na figura nuviosa de uma cobra ou crânio). Algumas das cenas de maior impacto emocional do filme dão-se tendo o tenebroso céu acinzentado como pano de fundo (comentarei algumas delas mais abaixo).Finalizando alguns apontamentos sobre os aspectos técnicos deste 6º filme, não posso deixar de ressaltar o brilhante uso do plano contra-plongée[3] no último ato, quando Harry confronta-se com Snape e este se impõe sobre ele, criando um plano arrebatador, extremamente significativo para a as circunstâncias do enredo, evidenciando um grande Mal que se prostra frente ao Bem momentaneamente impotente (atentem-se para a casa em chamas ao fundo, me fez lembrar uma impressionante cena de Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa). Estas composições técnicas definitivamente coroaram o excepcional trabalho do diretor David Yates. Apostaria em Harry Potter e o enigma do príncipe como forte candidato às categorias técnicas do Oscar 2010: direção de fotografia, montagem, edição de efeitos visuais e sonoros, etc.Enfim, cabe agora um breve comentário sobre o desenvolvimento de alguns personagens e de algumas tramas centrais, que poderíamos considerar como principal fator para a plena maturidade cinematográfica da série, alcançada neste 6º filme.Realmente, depois de seis filmes convivendo com as mesmas personagens, tanto os expectadores da série nos cinemas, quanto os próprios atores, sentem-se confortáveis e preparados para compreenderem as nuanças de comportamento dos jovens personagens.Daniel Radcliffe (Harry Potter) esmera-se cada vez mais em sua interpretação, dando certa densidade psicológica à personagem, porém ainda não aprofundada (mas este aspecto depende necessariamente da construção da personagem no texto original), aponto como destaque a ótima inversão de comportamento de Potter, após tomar a poção oferecida pelo professor Horácio Slughorn, oferecendo alguns momentos de alívio cômico com suas expressões debochadas e irônicas, mas sempre integradas à motivação da trama. Emma Watson (Hermione) destaca-se neste capítulo da série, proporcionando, para cenas que tratam de seu amor por Ronnie, uma interpretação sensível e apaixonada, desconstruindo sua postura sempre firme e racional (lindíssima a cena em que se encontra sozinha, envolta por passarinhos mágicos, produzidos por sua magia e lágrimas).Harry Potter e o enigma do príncipe desenvolve interessantemente dois personagens com fortes contornos trágicos: Draco Malfoy (Tom Felton) e Alvo Dumbledore (Michael Gambon).Malfoy é arregimentado pelas forças malignas de lord Voldemort, e a ele é imposta a ardilosa tarefa de trazer para Hogwarts os mais temíveis comensais da morte, além de, no último ato, ser impelido a matar Dumbledore. Draco, assim como Harry, é jovem e ainda incapaz de sustentar tal fardo, sofre com o peso da família patriarcal, partidária das forças do Mal, e impõe a si mesmo a reclusão e, consequentemente solidão. Como um pássaro engaiolado, mergulha num triste conflito interno, dividido entre dois lados inconstantes de sua consciência, o Bem e o Mal (reparem na cena em que a personagem aparece com metade do rosto encoberto pela sombra de uma parede; e também em como ele reage quando vê um pássaro morto, possivelmente identificando-se com a condição do pobre inocente). Draco Malfoy representa um tocante questionamento de como a imposição do destino e das tragédias adultas marcam profundamente a personalidade de um adolescente em formação, forçado a amadurecer rapidamente. Sustentando brilhantemente os contornos trágicos da personagem, Tom Felton talvez encarne nos próximos capítulos uma das personagens mais interessantes do mundo adolescente de Harry Potter.Mas é por Alvo Dumbledore que choramos ao fim da projeção, e cabe a ele tomar para si um dos mais temidos fardos da existência humana, o envelhecimento e a morte. Realmente, é cômica e debochada a atitude de Dumbledore ao encontrar, numa casa “trouxa”, revistas de Crochê; no entanto, tal atitude será sempre retomada indiretamente, em vários momentos em que ele mesmo ressalta sua velhice. É tocante percebermos que assim como para todos os “trouxas”, a velhice e suas excentricidades chega também para todos os bruxos. Dumbledore representa muito bem este momento, apresenta-se mais afetivo para com Harry e também mais contemplativo, como que vislumbrando o mundo pela última vez (emocionante e significativa a cena final de sua morte, quando o sol se põe no horizonte, a suas costas).A morte de Dumbledore é construída ao longo da projeção. Particularmente no quarto ato dá-se o processo final, a trajetória final de Dumbledore e sua última aventura. Os indícios de seu sacrifício são ricamente delineados nas cenas que seguem à avassaladora tomada panorâmica dos rochedos frente ao mar turbulento (salientando a pequenez dos protagonistas frente ao Mal que se impõe sobre eles). O sangue derramado por Dumbledore, no lugar de Harry, privilegia possíveis conotações sagradas de sacrifício (a questão do martírio é retomada de forma dramática quando o sábio mago pede água à Harry, e este não pode atendê-lo); o pequeno lago que atravessam utilizando um barco possui clara alusão ao rio dos mortos da mitologia; a própria questão da travessia é símbolo da mudança e da provação; e a espetacular tomada em que Dumbledore salva a si mesmo e Harry pela última vez já é suficiente para o impacto dramático do conseqüente desfecho trágico da personagem.Após a morte de Dumbledore, segue-se, na minha opinião, uma das cenas mais emocionantes da série até aqui: circundando o corpo inerte de Dumbledore, bruxos sensibilizados com o sacrifício do mestre erguem suas varinhas num último alento, envoltos por muita dor e pesar, e buscam entre as nuvens escuras e tenebrosas do Mal, um traço de luz e de esperança.Creio que me estendi por demais nesta crítica, e mesmo assim, não tratei de todos os aspectos que gostaria de tratar. Gostaria de assinalar ao menos para uma outra rica metáfora, também pertinente para a evolução psicológica de alguns personagens nestes últimos episódios da série: o aquário sem água, que deve se encher novamente. Lembrando do derradeiro pedido de Dumbledore: água/esperança/vida.Fechando a crítica, acredito que este último filme da série é seu melhor exemplar. Adotando uma postura mais crítica e inventiva quanto ao seu processo adaptativo (do livro para as telas), Harry Potter e o enigma do príncipe esbanja primor técnico e várias sutilezas de filmagem, acrescentando à obra fílmica um elevado padrão de qualidade cinematográfica. As tramas centrais foram muito bem conduzidas e sustentadas pelo bem preparado e talentoso elenco, que trouxe dinamismo à série, em ótimos momentos dramáticos. Acredito que as explicações para alguns motivos associados às tramas centrais e secundárias virão nos próximos filmes, ou serão apenas sugeridas, numa adaptação cheia de elipses, que ao tomar certas liberdades conscientes, só acrescentará ao universo mágico da literatura de J. K. Rowling o que o Cinema pode oferecer de melhor, como este brilhante filme, cinco estrelas.

[1] Grosso modo, teríamos o primeiro ato ambientado no mundo dos trouxas, o segundo ato já em Hogwarts, primeiro semestre de aulas; terceiro ato com o retorno das férias e as peripécias que levam ao desfecho; quarto ato corresponderia ao desfecho; e a conclusão dar-se-ia num quinto ato.[2] Vejam O Grande Ditador, de Chaplin; O Grande Truque, de Christopher Nolan; e Swnney Todd, de Tim Burton.[3]. “Quando a câmera se encontre abaixo do rosto da personagem, o plano é chamado de contra-plongée. O principal objetivo deste tipo de plano é evidenciar características psicológicas dos personagens ou evidenciar situações nas quais esses personagens se encontram, como a câmera se situa abaixo do rosto do personagem, este aparece engrandecido pela imagem, o que transmite a sensação de superioridade, paternalismo, força, grandeza ou altivez.”

Os motivos simbólicos na narrativa de "O Labirinto do Fauno"



Retomando meu post anterior sobre o filme O Labirinto do Fauno (Galera, este filme é tão rico de significados! E este ensaio é só uma leitura possível), pretendo justificar meu posicionamento quando me referi à necessidade de contaminar os sonhos e fantasias de Ofélia com a dor e o sofrimento do “mundo dos humanos”. Os contos de fadas são para o inconsciente infantil o equivalente à mitologia para os adultos. É através desses contos, oriundos das lendas populares de tradição oral, que crianças compreendem o próprio contexto no qual estão inseridas, e encontram, inconscientemente, motivações lúdicas para seus próprios medos, desejos e incertezas. Após a fixação escrita dos contos de fadas, amplamente divulgados na literatura por meio dos livros dos irmãos Grimm e de Charles Perrault, a indústria do entretenimento vem subvertendo valores caros à infância, desde Walt Disney (à exemplo, a inclusão irrelevante de nomes estereotipados para os anões na versão animada de A Branca de Neve, prejudicando a focalização da narrativa) a diretores contemporâneos, viciados pela predileção vulgar à piadas adultas e conotações sexuais explícitas retiradas dos filmes adolescentes e inseridas nos filmes de temática infantil. Em O Labirinto do Fauno notamos a progressão segura e comoventemente respeitosa das motivações infantis que estruturam a trama. Ofélia se mostra, desde o inicio, atrelada aos livros de contos, e quando passa a enxergar a natureza, depois de encaixar a pedra-olho em seu lugar de origem, percebe que somente nos livros de fadas encontrará as explicações para os seres e fenômenos que a perseguem, passando a ter (conceber) o Fauno como mentor para os mistérios da natureza. Este mesmo motivo, da importância do livro como combustível de imaginação, é retomado quando Ofélia recebe do fauno um livro que lhe revelará os caminhos que deve percorrer, e também ao transformar, por meio da ilustração de uma página de um de seus livros, um inseto em fada. A partir daí, notamos o respeito de Guilhermo del Toro a este encantamento pueril, ao jamais permitir que um adulto vislumbre toda a fantasia que permeia as ações da menina. O diretor, por sua vez, utiliza-se dos sonhos de Ofélia para emoldurar o principal elemento motivador da trama: a necessidade do retorno à existência intra-uterina como forma de fuga do ambiente hostil e terrivelmente doloroso causado pelas guerras totalitaristas e a morte de inocentes. Daí as inúmeras referências ao útero materno, desde a gravidez de Carmen, mãe de Ofélia, aos aspectos visuais como a entrada do labirinto, a cabeça do fauno, as manchas de sangue no livro, e a impressionante composição uterina reformulada ao se colocar um bebê mandrágora dentro de um recipiente banhado por leite, e alimentá-lo com sangue. Evidente que pouca relevância teria os aspectos visuais se o texto não os motivasse. Ofélia não resiste ao contexto histórico que a sufoca, e com toda sua inocência e virtuosismo adentra as mais profundas manifestações do seu inconsciente, a fim de cumprir as tarefas dadas pelo Fauno e assim ter permissão para regressar ao reino subterrâneo (segurança intra-uterina). Já podemos perceber a relação intrínseca da vivência real da criança com a sua própria motivação lúdica. À exemplo, a cena em que Ofélia chega à mesa do Homem-Pálido e o desperta ao comer frutas de sua ceia: sua mãe a havia proibido de jantar. Ou quando, vestida como Alice (mas em tons que já antecipam uma natureza fria e densa), penetra a cavidade suja e lodosa de uma árvore apodrecida, símbolo atual e urgente para a natureza destruída pelas atitudes mesquinhas dos homens (pertinentemente representados pelo enorme sapo asqueroso e consumista). Após testemunharmos inúmeras ações cruéis protagonizadas por homens como o Capitão Vidal, cuja obediência cega a um governo fascista acaba deixando-o, como uma engrenagem, áspero e inexorável, assumimos a condição de espectadores de um comovente desfecho, em que a realidade crua e desumana contamina o universo de fadas de uma criança e as consome com brutalidade. Embalados por uma belíssima canção de ninar, emocionamo-nos com o final de Ofélia, capaz de derramar o próprio sangue a fim de preservar a vida de um inocente, comprovando assim sua pureza e virtude, permitindo-se, em um último alento, regressar ao seu reino encantado. Direito de toda criança. Percebo, na conclusão de O Labirinto do Fauno, uma simbolização final para toda uma série de motivos religiosos presentes no filme, cujo principal argumento acredito que transitaria entre a fé cristã no paraíso eterno. No entanto, prefiro minha leitura, pautada na literatura infantil, em que, como Dorothy em O Mágico de Oz, Ofélia mostrou-se capaz de possuir os sapatinhos de rubi, que a mantiveram segura e inocente enquanto caminhava pelas estradas de tijolinhos amarelos da imaginação, até que a realidade humana consumiu sua infância.

Comentário Crítico: "O Labirinto do Fauno"


Dias atrás assisti ao Labirinto do Fauno novamente, um dos três melhores filmes que vi em 2007 (os outros dois foram Filhos da Esperança e Pequena Miss Sunshine). Uma oportunidade ímpar para revisitar o universo maravilhoso e atemorizante concebido pelo diretor Guilhermo del Toro (HellBoy e Espinha do Diabo). Ter uma criança como personagem condutor da narrativa quase sempre é uma dádiva. Sua fragilidade e inocência, aliadas ao seu espírito determinado e esperto, despertam no espectador uma identificação instantânea. No entanto, nem sempre este mundo lúdico da infância é respeitado pelos diretores e autores adultos, como vemos no fraco Crônicas de Nárnia: O Leão, A Feiticeira e o Guarda-roupa. Em O Labirinto do Fauno, nos surpreendemos com o contrário. É no contexto cruel e vil do mundo dos humanos, cujo realismo sempre sufoca e apavora, que a fantasia vê-se, necessariamente (justificarei o motivo no próximo post), contaminada pela dor, sofrimento e morte. O filme se passa em 1944, período de ditadura do General Francisco Franco, e narra a trajetória trágica da menina Ofélia (Ivana Baquero, comovente por seu perfeito peso dramático e lúdico), que chega a um moinho, incrustado na mata fechada, com sua mãe (Ariadna Gil), cuja fragilidade causada pela gravidez reflete na incapacidade de entender os sentimentos fugazes da filha, . Neste lugar, rebeldes são perseguidos por homens do exército franquista, liderados pelo capitão Vidal (excelente trabalho dramático de Sergi López). Após ser recebida friamente pelo capitão, Ofélia encontra um labirinto abandonado e, como Alice na toca do coelho, adentra seu próprio universo de fantasia. Ao deparar-se com o Fauno (Doug Jones), divindade mítica da natureza, a menina recebe a notícia de que não pertence ao mundo dos humanos, visto que é uma princesa fugitiva, e deve voltar o mais cedo possível para seu palácio, que lhe é de direito. Mas para isso, recebe três tarefas, em cujos cumprimentos estará a comprovação de que ainda não se tornara humana (possível alusão à idéia de corrupção, vilania, egoísmo e malícia do homem ou do adulto). O roteiro trata do desenvolvimento de tramas paralelas em dois contextos diferentes. Além de acompanharmos as aventuras de Ofélia em seu mundo fantástico, também somos cúmplices da luta dos rebeldes pela liberdade. Vemos o destino de Mercedes (Maribel Verdú, em uma interpretação delicada, segura e poderosa), de Pedro (Roger Casamajor) e do doutor (Alex Ângulo) cruzarem-se ao longo da projeção, até o ato final, em que os guerrilheiros rebelados reagem contra os militares franquistas. Com uma fotografia fascinante, aliada a uma direção de arte igualmente brilhante (impossível não reverenciar a criação quase toda artesanal de cenários como o centro do labirinto, a sala de jantar do Homem-Pálido ou o aposento industrial e frio do capitão Vidal) o diretor consegue produzir a atmosfera perfeita para a ambientação da narrativa. Ofélia vê-se em um lugar triste, seco e hostil, como algumas pessoas com quem tem que conviver. Contudo, desde o início, demonstra ter uma capacidade inocente de perceber a sua volta os indícios de uma natureza oprimida e consumida pelos vilipêndios do homem e seu egocentrismo. O diálogo entre o a natureza sombria do totalitarismo, concentrada na figura imponente do capitão Vidal, e da própria natureza física, presente na impressionante cenografia, confere às ações das personagens um altíssimo grau de dramaticidade e transfere ao texto um denso conteúdo simbólico (de cujas possíveis leituras falarei de algumas no próximo post). Admirável é a sensibilidade de Del Toro quando, mesmo permeando os sonhos de Ofélia com cenas de mutilações e sofrimento (as fadinhas no episódio do homem-pálido traduzem muito bem isso), medo e morte (desde o ambiente úmido e repugnante da árvore seca à iminência da morte depois de desobedecer as ordens do Fauno), mostra-se capaz de justificar-se coerentemente, apresentando o equivalente real para cada atrocidade fantástica, e (o que é mais louvável) jamais deixando que a menina deixe sua condição infantil a fim de adquirir responsabilidades adultas. Chegamos ao fim do filme e constatamos a natureza real da grande metáfora do conto de fadas ao qual acabamos de assistir: o quanto é pernicioso o mundo dos homens para uma criança, que após abandonar o útero materno, encontra-se fadada ao desalento, sofrimento e dor da existência. A busca pura e sincera pelos indícios de beleza e vida no mundo é um eco no labirinto imaginário da infância, que nós, homens-pálidos de inocência não sabemos mais onde encontrar.

Comentário Crítico: "Meu nome não é Johnny"


Com uma narrativa simplista e jocosa, Meu Nome não é Johnny peca pelo excesso de ingenuidade e superficialidade na abordagem dos inúmeros temas inseridos na trama. O filme conta a história de um jovem inteligente e esperto, porém inconseqüente. Típico “Boyzinho” de classe média, João Guilherme (Selton Mello, sempre fantástico, e infelizmente mal aproveitado pelo roteiro) mostrou-se desde pequeno possuir uma habilidade inata: conseguir dinheiro rápido, e gastá-lo mais rápido ainda. Afastando-se cada vez mais do convívio familiar, ou sufocando-o com as constantes festas entre amigos dentro da própria casa, Jõao entrega-se ao prazer do uso de drogas, e cada vez mais, mostra-se viciado pelos lucros que ela lhe poderia proporcionar, tornando-se um dos maiores e mais respeitados traficantes do asfalto da zona sul carioca. No entanto, sua fama passa a ser sua principal fraqueza. Usufruindo-se, em desmedida, de todo dinheiro arrecadado com a venda de drogas a amigos e conhecidos, João Estrella foi presa fácil para traficantes maiores, policiais corruptos e promotores públicos. A trajetória da personagem revela sua total displicência quanto às obrigações fundamentais de quem adquiri certa independência financeira e passa a morar sozinho (já antecipada quando fala da presença do pai como um vizinho na casa que diz ser cada vez mais sua), culminando em momentos desconcertantes e até irônicas (como quando nos surpreendemos com as atitudes compassivas dos policiais, ao perceberem a precariedade a qual João se sujeita em sua própria casa, mesmo sendo um famoso traficante de drogas). Com inúmeras influências e diversos temas, o filme de Mauro Lima (Tainá 2) atem-se a várias situações dramáticas vividas pela personagem central, no entanto, em nenhum momento demonstra levar seus conteúdos argumentativos a sério. Meu Nome não é Johnny, ao contar um história verídica, compromete-se com a necessidade de contextualizar os principais ambientes pelos quais passou seu protagonista, contudo, o caráter fictício de manipulação dos fatos no universo diegético do filme a fim de causar um efeito metafórico não pode deixar de incorrer sobre o processo de argumentação e concepção do roteiro. A partir deste fator implícito na produção cinematográfica, percebemos o principal pecado do diretor: o filme que poderia dizer muito, acaba por não dizer quase nada. Na primeira uma hora de projeção, somos apresentados à origem de todo descompasso na vida de João Guilherme, desde a adolescência de prazeres simples, como comprar roupas de marca e pranchas de surf; passando pela juventude rebelde de festas, azarações e o uso de drogas ilícitas (pressupomos que o consumo de drogas fora influenciado pelo vicio do pai e como uma válvula de escape para a separação dele e sua mãe), culminando em uma das únicas cenas com um peso dramático relevante, a morte do pai enquanto ocorre uma dessas festas. Com uma abordagem a fim de provocar o riso, o diretor adquire o mesmo caráter de seu protagonista ao trabalhar os diálogos e ações vinculados aos motivos narrativos, comprometendo a focalização séria e realista da trama. No ótimo O Senhor das Armas, de Andrew Nicoll, por conta do aspecto sóbrio e calculista do roteiro, tínhamos uma crítica necessária ao conteúdo político e social do enredo, causada pelas "tiradas" ácidas e inteligentes do irreverente personagem interpretado pelo ator Nicolas Cage, mas, em Meu Nome não é Johnny, somos enganados pelo ar, nem sempre verossímil, de comédia clássica (guardada suas devidas proporções, pois o filme mesmo não é uma comédia), onde o riso pressupõe a crítica e precede a moralização, mesmo quando causado pelos estereótipos (policias paspalhões e magnatas hollywoodianos) e situações forçadas (conflitos em presídios com necessidade de tradutor?). Mas os problemas maiores ocorrem na segunda hora, quando João Estrella perde as asinhas da liberdade e engaiola-se nas prisões da promotoria pública. Se Hector Babenco, com toda sua experiência, precisou de 2 horas para mostrar com relevância a situação de presidiários e carcereiros do sistema penitenciário em seu convívio diário, e Laís Bodanski, de quase 2 horas de projeção para contar, com seriedade e sensibilidade, a história de um jovem que é internado em um sanatório, depois de passar por estes mesmos dramas de juventude pelos quais Johnny passou, não é apenas baseando-se nas cenas de Carandiru e Bicho de Sete Cabeças (quase refilmando-as), respectivamente, que o diretor de Meu Nome não é Johnny vai conseguir, em algumas tomadas, mergulhar a personagem central no meio social perturbador da cadeia e do manicômio, permitindo que desta forma se encontre consigo mesmo e adquira forças para regressar ao lar (metáfora sempre recorrente para o necessário caminho de redescobertas e busca pela felicidade). Por estes e outros motivos (confesso que a escolha dos temas que compõe a trilha sonora me incomodou bastante em alguns momentos) justifico minha sensação de ausência de credibilidade para o desfecho da trama, na qual apenas somos informados de que Johnny foi curado e agora é produtor musical. Mesmo com atores experientes como Selton Mello, Cléo Pires (simpática na composição da personagem), Júlia Lemmertz (ótima como a mãe de João Guilherme, e infelizmente, esquecida pelo roteiro) e Giulio Lopes, que desde Contra Todos, mostrou-se muito talentoso, o filme espelha uma direção imatura e juvenil.

Relembrando Bobby Fischer, "Lances Inocentes"


Alguns dias atrás, relembrando a morte de Bobby Fischer, campeão mundial de xadrez em 1972, e considerado um menino prodígio, assisti a Lances Inocentes novamente. E me comovi... novamente. O filme não é só uma homenagem a este campeão mundial e ídolo de gerações de enxadristas, mas uma emocionante narrativa da busca de uma criança pela saída mais justa e sincera. A partir de flashes das principais partidas e entrevistas de Fischer, conhecemos o universo de um garoto que, também apaixonado pelo jogo, passa por inúmeros desafios, não só no tabuleiro, mas com o choque entre suas regras, de vitória ou derrota, e a perda de sua inocência e senso de justiça. O filme conta a história de Josh Wetzkin, um menino de sete anos, que, ao aprender a jogar xadrez, provavelmente apenas assistindo a partidas entre moradores de um parque (nem mesmo sua mãe sabe como adquiriu esta capacidade), desperta um incrível talento criativo para o jogo. Chamando a atenção de seu pai (Joe Mantegna), Josh passa a jogar e estudar xadrez todo o tempo. Incentivado por sua família, recebe aulas de um velho e falido mestre do xadrez (Ben Kingsley), e passa a disputar torneios, conquistando títulos a cada etapa. É a partir deste momento que o menino percebe a influência do jogo na sua relação com o pai. Nas regras do xadrez, pai e filho buscam suas próprias estratégias para superarem seus sonhos e fracassos, a fim de manterem uma relação sincera e verdadeira. Max Pomeranc dá a Josh um carisma admirável, numa excelente atuação, transfere naturalmente para a tela a inocência e altruísmo de uma criança de boa índole, refletindo assim seu ambiente familiar saudável, e ainda compromete-se com a expressividade do trabalho cênico nas cenas dos jogos e outras de maior dramaticidade. Joe Mantegna convence no papel de pai, e jamais adquire um caráter repressor ou autoritário quando é duro com o filho. Percebemos uma família equilibrada, o papel da mãe (Joan Allen) é necessário e relevante nos principais momentos de conflito, e o pai sempre presente, mesmo quando se deixa levar pelo talento do filho. O xadrez é mais que um pano de fundo na narrativa de Lances Inocentes. O jogo é orgânico na trama, trás motivos contundentes para a reflexão dos conflitos psicológicos e morais do enredo. É através das suas ligações com o jogo que conhecemos duas personagens fundamentais para o aprendizado de Josh: o professor interpretado por Ben Kingley e o amigo do parque (Laurence fishburne). Ambos, tratando o xadrez como arte, mas divergindo em suas concepções, acabam por contribuir para a formação de Josh, tornando-a desprovida de preconceitos e intolerâncias. Lances Inocentes, como já mencionei, fala dos conflitos e descobertas de um garoto que se vê impulsionado para uma realidade de vitórias e fracassos não condizente com sua ingenuidade infantil. À vista disso, têm-se um trabalho absolutamente competente do diretor, aliada à trilha sonora belíssima de James Horner (Titanic), Steven Zaillian(A Grande Ilusão) dá às cenas de seu filme um caráter leve e comovente, em harmonia com os aspectos visuais sempre envolventes e pertinentes ao enredo, mérito da fotografia aliada à direção de arte, que juntas compõem momentos de extremo apresso artístico (a cena que mostra homens jogando xadrez no parque em meio a uma forte chuva, e outra, na qual testemunhamos uma discussão entre pai e filho também sob um forte temporal refletem o quanto pode ser opressora e fria a realidade do mundo e da vida longe de casa). As primeiras cenas do contato de Josh com o xadrez, sensivelmente constituídas pelo enquadramento do diretor, demonstram o aspecto lúdico da visão de uma criança e seu interesse conferindo a cada objetivo um valor emotivo muito forte, como podemos perceber no momento em que Josh enfileira as peças de seu LEGO, transformando-as em peças de xadrez, e quando troca uma bola de beisebol por outra peça do jogo. Este respeito à realidade inocente da criança permeia toda a projeção, dando aos momentos tensos da trama um ar de brincadeira séria, não carregando demais a intensidade dramática a fim de oprimir os aspectos lúdicos do garoto (é brilhante a cena final, ao vermos Josh olhando o tabuleiro vazio, poucos adultos conseguiriam ver além do que está a sua frente). Enfim, mais a frente tratarei, na categoria Possíveis leituras, dos aspectos lúdicos infantis abordados neste filme. No mais, fica aí uma indicação imperdível. Bons filmes.

O cenário pós-apocalíptico em "Eu sou a lenda"


Como já comentei no post anterior sobre o filme, produções deste subgênero do terror, conhecidas popularmente como “filmes de zumbis”, sempre oferecem respaldo para discussões sobre atitudes políticas negligentes, contaminação e destruição ambiental causada pela evolução da ciência e industrialização, e conceitos sociais de ética e moral quando a questão é matar ou salvar um ser humano infectado, além do envolvimento emotivo do homem ao presenciar seus entes queridos serem consumidos pela dor e morte causadas pelo contágio. Ter que matar o próximo pode levar a um sentimento terrível de solidão. Na trajetória de Robert Neville (Will Smith), concentram-se todas essas motivações, inserindo a personagem em um cenário apocalíptico, onde o ser humano está sob o julgamento de suas faltas, conseqüências de seus próprios atos. Desde o início da trama, percebemos os significados que mitificam a personagem, transformando-a em um homem que traz dentro de si a salvação. Em um contexto em que o Ser Humano, contaminado pelo seus vícios, busca a redenção, Neville sabe que pode levar esperança para os sobreviventes, mas que isso lhe custará a vida. Já no início de Eu Sou a Lenda, deparamo-nos com uma realidade instaurada que choca, à primeira vista, o Homem do século XXI: com seu carro e arma como instrumentos de caça, o coronel Robert Neville aparece perseguindo um antílope, inserido no centro de uma metrópole devastada pelo abandono. Tal concepção pressupõe um desacerto na ordem natural da evolução humana. Certamente, nesta primeira cena do filme, já se faz claro a vulnerabilidade física e emocional do homem que ainda não fora corrompido pelo vírus. No contexto da produção, o vírus é fruto de uma necessidade humana, a busca da cura para seus males, tanto pela ciência quanto pelo misticismo. Ao assistirmos à doutora krippin responder com um afirmativo “sim”, mesmo titubeante, à apresentadora de um programa de auditório, quanto esta pergunta se ela acreditava que tinha encontrado a cura para o câncer, podemos entender que a necessidade humana muitas vezes está contaminada por sua arrogância e egoísmo. O resultado é uma pandemia viral responsável pela dizimação de quase toda a população do planeta. No entanto, abstraindo estes aspectos factuais do enredo, podemos conceber os infectados como reflexos da população humana real do século XXI. Nós somos seres contaminados. Contaminados pela raiva, cobiça, ódio, inveja, somos corruptíveis e egoístas, destruidores vorazes dos seres naturais, e, o que mais nos assola, somos os únicos seres do planeta que destroem a própria espécie descomedidamente. A partir desta constatação, Neville passa a situar-se como símbolo messiânico de redenção. É através dele que os infectados conseguirão a cura. É através deste homem que a humanidade conseguirá sua salvação. No entanto, como todo mensageiro que leva esperanças de paz, Robert não é ouvido pelos seres da noite, e obrigado, por sua condição imaculada, ao isolamento, resigna-se à busca solitária por humanos, livres da contaminação, que possam ouvir sua mensagem de esperança. Tomando o Novo Testamento da Bíblia Sagrada, vejo a personagem de Will Smith como um outro Cristo, que é impelido à dor e ao sofrimento para purificar toda a humanidade. Relembrando a cena no Monte das Oliveiras, Neville sofre com a perda e com a solidão, e, ao presenciar a morte de sua única fonte viva de esperança, arremessa-se no abismo do ódio e do remorso, enfrentando uma quantidade letal de infectados em um duelo noturno. Até onde vai o limite da sanidade quando o homem se vê só? E deste momento retiramos uma outra intrigante questão: Será que, para sua salvação, o Ser Humano não necessita superar sua própria culpa? Com o aparecimento da personagem Ana e do menino Ethan, somos conduzidos ao desfecho dramático da trama, no qual testemunhamos o sacrifício do Tenente-Coronel Robert Neville para que a cura, recentemente descoberta, seja levada aos que dela necessitem. É interessante salientar um novo paralelo com a morte do Cristo na cruz. Assim como Ele, Neville se entrega aos seres corrompidos, mesmo destruindo seu corpo com uma granada, seu fardo é morrer sob os infectados, para que outros seres de bem possam sobreviver. A presença de Ana e Ethan alude aos últimos minutos de Cristo, quando Este fala a sua mãe e seu apóstolo João. Como já mencionei no início deste artigo, filmes como Eu Sou a Lenda possuem este caráter apocalíptico, implícito no enredo, que nos traz à tona um questionamento sempre recorrente em todas as épocas da história da humanidade: Poderá o Ser Humano, contaminado por seus vícios, encontrar virtudes capazes de levá-lo à salvação? Esta é uma leitura possível do filme da qual eu mesmo tenho algumas ressalvas, mas isto já uma outra conversa. Comentem! E bons filmes.

Comentário Crítico: "Eu sou a lenda"


Ao sair da sessão de Eu Sou a Lenda, confesso que fiquei dividido ao pensar no que o filme significou para mim, e como classificá-lo. Mesmo possuindo alguns problemas referentes à verossimilhança do roteiro (o que é comum ao gênero), ainda sim é uma ótima produção, visto que, apresentando-nos uma trama simples e linear, cumpre seu papel fundamental de desenvolvê-la sempre inserindo competentes composições metafóricas para possíveis leituras de significados éticos, morais e afetivos. O filme é mais uma adaptação do livro homônimo de Richard Matheson, publicado em 1954. Will Smith é Robert Neville, cientista militar e, aparentemente, único sobrevivente de uma pandemia viral que dizimou a população humana, tornando-a seres noturnos, caçadores vorazes de carne. Inexplicavelmente, Neville é imune ao vírus, e a partir desta constatação, passa a formular, com compostos do seu sangue, testes em animais contaminados, a fim de encontrar um antídoto capaz de reverter a ação da substância, criada pelo próprio homem como alternativa para a cura do câncer. Com sua única companheira, uma cachorra chamada Samantha (Sam), sobrevive na cidade de Nova Iorque (ponto zero do contágio), devastada e inóspita, agora habitada por animais selvagens e seres contaminados. Passa o dia caçando, treinando, estudando o vírus e, no momento do sol a pino, espera, no cais, por sobreviventes que possam ter ouvido sua mensagem de rádio, ofertando abrigo e esperança. À noite, tranca-se em sua casa, esperando que os seres noturnos não o encontre. O filme parte de um enredo já conhecido no gênero terror: Um vírus, criado pelo ser humano, fruto de sua ambição e egoísmo, contamina outros humanos, tornando-os seres antropófagos. Cabe aos sobreviventes da contaminação achar uma cura para o mal, enquanto tentam sobreviver em meio ao ambiente hostil que se instaura. Estas produções, além de funcionarem como manifesto político, social e ambiental, assumem um caráter apocalíptico, em que o ser humano, corrompido pelo vício, busca a redenção. Este é um dos pontos que mais prezo no filme de Francis Lawrence (Constantine). Com uma direção de arte peculiar, somos inseridos em um contexto paradoxal, em que a evolução científica leva a regressão social, obrigando o homem, solitário e vulnerável, a desenvolver um apurado instinto de sobrevivência, e criar inúmeras formas de persuadir sua mente, a fim de não enlouquecer com a solidão (fato brilhantemente representado na cena em que Robert, enlouquecido, atira em um manequim. Até onde vai o limite da sanidade quando o homem se vê só?). Will Smith assume com mérito este peso dramático. Sua carga emocional comove quando o testemunhamos despedir-se de sua família, interagindo com manequins em lojas, e na forte cena que mostra sua dor ao segurar sua cachorra que acabara de ser contaminada. Após arremessar-se contra a noite, num gesto inconsciente de dor e ódio, e ser encurralado pelos infectados, Robert é salvo por dois sobreviventes, que o levam de volta para casa, e lhe oferecem conforto. Entram na narrativa as personagens de Alice Braga, Ana, e do garoto Charlie Than, Ethan. A brasileira Alice Braga, como ocorre com outros atores do nosso cinema, não tem muito tempo e respaldo no roteiro para mostrar seu talento, mesmo assim, mantêm-se firme, com uma personagem forte, e decidida, mesmo sendo plana. Caberá a ela levar o antídoto que salvará toda a humanidade, este é, infelizmente, o único motivo que a insere na trama. Eu Sou a Lenda também tropeça no excesso de manipulação das situações de tensão entre a personagem e os seres da noite (O roteiro deve ser verossímil com o que propõe). Trabalhando com seres infectados concebidos por animação gráfica, o diretor rompe com a ameaça psicológica causada no espectador ao ver seres humanos reais contaminados (atores maquiados), além de inserir o protagonista em situações impossíveis de sobrevivência (a cena em que Neville está entre as ferragens de um carro e é salvo por Ana – como ela conseguiu sobreviver aos monstros?), e que culminarão nas cenas mais dramáticas do longa, tornando-as, mesmo que ótimas em sua concepção, sucessoras de motivos inconcebíveis. Mesmo falhando ao inserir sem justificativas um líder entre os infectados, e não observando motivações inconsistentes para algumas cenas de ação, como na qual presenciamos Robert preso em uma armadilha, inexplicavelmente inserida na cena, o filme trabalha muito bem as situações dramáticas que estabelecem os principais conflitos vividos pela personagem de Will Smith. Sem dúvida nenhuma, o título do filme justifica o peso de uma interpretação segura, corajosa e brilhante de Will Smith, que como Tom Hanks em Náufrago, prova ser capaz de conduzir sozinho toda trama. Esqueçamos os seres da noite, em Eu Sou a Lenda, presenciamos a tragédia de um homem que, para levar a luz a toda escuridão do mundo, foi capaz de sacrificar a própria vida. (este será o tema do meu próximo post: uma leitura possível do filme intitulada O cenário apocalíptico em Eu Sou a Lenda).

Comentário Crítico: "Fernão Capelo Gaivota"


Após ler o livro de Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota, decidi assistir ao filme homônimo de Hall Bartllet, há muito tempo esquecido na minha prateleira. Depois de 1 hora e meia, já estava totalmente envolvido pelos sonhos de Fernão, e partilhando com ele os mesmos ideais. Como seria maravilhoso se pudéssemos aprender a voar sem limites. Fernão Capelo Gaivota é uma realização imponente. Do ponto de vista cinematográfico, não deixa de surpreender com suas magníficas cenas aéreas, de uma beleza envolvente e grandiosa. O filme narra a saga de Fernão Capelo, uma gaivota que sonhava com vôos mais altos dos que eram possíveis em seu bando. Fernão treinava sem descanso, e cada vez mais, lançava-se em velozes quedas-livres e vôos rasantes sobre o revolto oceano. Após alcançar alturas inimagináveis para uma gaivota, e libertar-se das leis e amarras que o prendiam à condição de seu bando, Fernão Capelo decide mostrar a todos uma nova maneira de voar, um vôo mais alto, mais veloz, além das limitações do grupo, que consideravam o ato de voar apenas necessário para, principalmente, adquirir alimento. Fernão Capelo Gaivota é banido. Exilado, inicia uma aprendizagem constante, sempre buscando vôos mais altos e mais velozes, até apanhar sua liberdade, alcançando um plano superior ao seu. Lá, recebe ajuda de outras gaivotas que lhe ensinam como voar sem limites e alcançar a perfeição. Com o uso de tomadas aéreas impressionantes, e filmagens documentais de gaivotas inseridas em cenários reais e significantes na trama, o filme mergulha o espectador em estágios simultâneos de contemplação e reflexão, transmitindo de forma simples e sensível os motivos do enredo. Aliada a uma ótima trilha sonora, com composições de Neil Diamond e uma brilhante fotografia, o diretor Hall Bartllet transpõe para a tela toda a riqueza dos planos metafóricos criados por Bach. A envolvente narração e as falas do texto são competentemente editadas sobre as filmagens do comportamento das aves em cada plano de cena, e assim, misturando-se de forma orgânica ao percurso visual das personagens naturais, acaba por proporcionar uma ponte absurdamente coesa para os significados humanos na trajetória de Fernão Capelo (eu quero ainda dizer que é impressionante, no filme, a verossimilhança da “fala” das gaivotas de acordo com suas “expressões faciais”. Soa até engraçado dizer isso, mas, em Fernão Capelo Gaivota, apresenta-se uma das melhores atuações animais que já vi no cinema). Naturalmente que, para este efeito verossímil de diálogo entre as aves e os argumentos do roteiro, a mão do diretor foi fundamental. Com enquadramentos conscientes e precisos e um trabalho igualmente sólido de montagem na pós-produção, o filme acrescenta qualidades visuais surpreendentes a toda transcrição emotiva contida na obra original. Mas sem dúvida, o mérito maior, na transposição do livro para o cinema, foi da genial fotografia. Em momentos complexos do enredo, notamos a arte do fotógrafo traduzindo as impressões de Fernão Capelo em seus vôos ascendentes. Cenas como a que vemos um bando de gaivotas sobre o lixo, contrastam, em seu aspecto realista e cruel, com as tomadas de Fernão em pleno vôo, em que se dissolvem no céu uma matiz viva de luzes e sombras, evidenciando o caráter elevado da condição de Fernão em relação aos seus companheiros. Fernão Capelo Gaivota é uma brilhante adaptação visual de um livro que fala com sensibilidade dos desejos e fracassos humanos. Entendemos, no ato de voar de Fernão, ricas metáforas para a condição dos homens que compartilham o mesmo sonho da busca interior pela plena realização.

Comentário Crítico: "100 escovadas antes de domir"


A escolha de uma adaptação verossímil à concepção de mundo de uma adolescente de 16 anos infere aos argumentos do texto um tratamento ingênuo e imaturo, levando o espectador, à primeira vista, perceber no filme traços marcantes de um melodrama televisivo barato. No entanto, não se trata de um simples filme sobre adolescentes para adolescentes. 100 Escovadas Antes de Dormir é um filme adolescente, para adultos, proibido para adolescentes. Dirigido por Luca Guadagnino,o filme conta a história de Melissa (Maria Valverde), uma adolescente siciliana de 16 anos que, na evolução latente de sua sexualidade, se encontra distante de seu pai e aquém de qualquer vínculo sincero com sua mãe, somente encontrando conforto na avó, que ao longo da projeção, demonstra evidências de um desequilíbrio emocional motivado por lembranças da juventude. Com sua única amiga, Manoela, compartilha suas incertezas e desejos. No entanto, é apenas em seu diário que confessa segredos mais íntimos. Humilhada por um rapaz mais velho, por quem sentia uma paixão ainda crescente, Melissa tem suas ilusões sobre o amor completamente destruídas (a cena de sua “primeira vez” representa muito bem, com uma fotografia avermelhada em plano escuro, a perda de toda sua inocência infantil sobre o amor). A partir deste momento, Melissa entrega-se a inúmeros rapazes de seu colégio, e, sem ter idéia das situações brutais de abuso sexual as quais se sujeita, pretende provar aos homens que já é uma mulher e que sabe os truques do sexo. Sem qualquer estrutura familiar, Melissa não recebe conforto materno para aliviar suas angústias e não sente confiança suficiente para iniciar um diálogo aberto com a mãe. Tem na avó um exemplo desiludido de solução para seus problemas (as já tituladas 100 escovadas no cabelo). Melissa busca nos jogos sexuais um caminho para a expurgação de suas dores sentimentais, mas não percebe que se precipita num imenso abismo de depravação e remorso, e, inconscientemente, afasta toda manifestação de amizade e carinho que pessoas boas podem lhe oferecer ao passarem ao seu lado. Como já mencionei ao iniciar este texto, as opções do diretor seguem o caráter auto-diegético do roteiro (personagem é o narrador da estória). O filme é uma adaptação do livro Melissa P. da autora Melissa Paranello (que criticou duramente o roteiro do longa), e parte de uma metalinguagem com o processo de escrita de um diário para contar a estória da personagem central. Trabalhando muito bem a atmosfera sensual das aventuras de Melissa (os planos concebidos pelo diretor revelam uma preocupação necessária: mostrar as expressões e reações das personagens secundárias em ações em que o olhar vulnerável da protagonista não as evidencia), Guadagnino causa um desconforto ao espectador que entende a gravidade das situações as quais a adolescente se entrega. Com uma fotografia sensível e perspicaz, as cenas recebem um peso dramático preciso. Percebemos nos tons secos e nas cores frias o quanto são vazias e insípidas as aventuras sexuais de Melissa, demonstrando que o prazer nem sempre funciona como analgésico para as feridas do amor. No entanto, são em momentos de afeto e aconchego, em que cores quentes de verão simulam uma atmosfera aprazível, que Melissa encontra-se acolhida, e pode assim, libertar-se de seus sentimentos ruins. A direção de arte tem seu mérito tanto ao denunciar visualmente ambientes sórdidos e sensualmente intencionados, criando recursos para uma leitura visual do quanto Melissa aprofunda-se naquele universo pernicioso (ao descer íngremes escadas em direção aos cenários de depravação ou fechar-se num mundo de sexo, obcecada frente ao monitor de seu computador), como quando nos proporciona ricas metáforas para os momentos de forte dramaticidade (o quarto da avó no momento da discussão de Melissa e sua Mãe, no último ato do filme, fotografado de maneira esplendida, leva para cada enquadramento diversos significados e alusões). A libertação figurada de Melissa, que, na encosta, lança-se ao mar, e nada em direção à superfície, completa um motivo contundente do enredo: era necessário para Melissa aprender a nadar. Fechando meus aspectos gerais sobre o filme (mas deixando muita coisa de lado sem comentar, pois, além de fechar uma conclusão, algo que não quero fazer, deixaria o texto muito longo) quero dizer que o filme pode até parecer ingênuo para alguns, ao tratar, sob uma ótica adolescente, questões tão sérias como a relação de pais e filhos, a descoberta da sexualidade e até a falta de carinho e afeto. Mas, como disse no início, 100 Escovadas Antes de Dormir possui um conteúdo implícito pertinente que justifica a escolha do diretor pela abordagem aparentemente imatura, porém quando feita uma leitura de forma lúcida e crítica, revela uma denúncia nítida e necessária para qualquer discussão acerca das influências do chamado “mundo lá fora” na vida de um adolescente em plena descoberta, e no relacionamento desses com seus pais. Sobre a proibição do filme a adolescentes, acredito que este é um filme que se não tratado com maturidade e sensibilidade, pode influenciar uma postura conformista de pais e principalmente de adolescentes, já inseridos no contexto mostrado na trama.

Comentário Crítico: "Onde os fracos não têm vez"



Onde os fracos não têm vez, ou melhor, No country for old men, é um filme episódico, factual, em que uma série de acontecimentos particulares, desencadeada pela ação de um homem, revela o estado atual de toda uma sociedade. Peculiarmente filmado pelos irmãos Coen, o roteiro não pretende apenas contar a história de um homem que encontra uma maleta de dinheiro sujo, mas estabelecer um parêntese no curso real (apenas na economia do filme) dos fatos ocorridos no deserto dos Estados Unidos naquele período (década de 80). Acho importantíssimo considerar o título original, que numa tradução intuitiva seria algo como: “sem (não há) lugar (pátria) para homens velhos”, e a partir dele, relevar uma constatação implícita pouco esperançosa da personagem de Tommy Lee Jones (xerife Bell), quando este diz que a idade pode simplificar o homem. Na verdade, seu tom desiludido e nostálgico revela certo mal da velhice: achar que as coisas eram melhores antigamente, quando (para ele) não era preciso empunhar armas para fazer valer a lei. Com uma trama conduzida de maneira sutil, não voltada para prolixos esclarecimentos acerca dos motivos do enredo, e preocupado com as nuanças psicológicas das personagens, o filme pode parecer não conclusivo, e até seu final um anti-clímax para uma expectativa de desfecho justo ou mesmo vingativo (elementos catárticos), construída na mente do espectador. Mas é justamente indo contra este maniqueísmo-cinematográfico que o filme se singulariza, e impressiona. Com um elenco competente e um trabalho primoroso de marcação cênica (impossível não nos afligirmos à composição insana do assassino fazendo sua primeira vítima, já nos primeiros minutos de projeção), os irmãos Coen não privilegiam apenas as personagens protagonistas na construção dos diálogos. Algumas cenas de absurda tensão e impacto dramático dão-se entre protagonistas e coadjuvantes, acrescentando a cada seqüência do longa um tratamento bilateral dentro do universo diegético do enredo (não só as personagens principais têm algo a acrescentar à trama). Mas, logicamente, são essas personagens principais que, ao cumprirem uma longa trajetória no árido deserto existencial criado por Mccarthy (autor do livro que deu origem ao filme), e padecerem sobre seus vícios e virtudes, sustentam a carga emotiva do filme. Josh Brolin encarna o trágico Llewelyn Moss, um pobre texano que, ao caminhar pelo solo seco do deserto onde acabara de ocorrer uma chacina entre traficantes, encontra uma maleta cheia de dinheiro, e decide ficar com ela. É após um breve momento como caçador, que Moss passa a ser a caça, tornando-se alvo de implacáveis empresários do narcotráfico mexicano e estadunidense. No entanto, seu verdadeiro algoz chama-se Anton Chigurh (percebam a ironia do diálogo em que o nome de Chigurh é mencionado e erroneamente interpretado como Sugar, açúcar em inglês. O sujeito é realmente um doce.). Javier Bardem (já colecionando prêmios merecidos pelo papel) encarna Chigurh de forma viceral, trabalhando com perspicácia a natureza metódica do assassino psicopata. Suas cenas inicial e final completam um resumo cíclico do processo de mitificação de sua personagem. Anton aparece como um lobo do homem. Acima da lei (ele literalmente a estrangula, metaforizando seu primeiro assassinato no longa), e adverso até à eminência da morte certa (cena final do acidente), Chigurh personifica uma crueldade universal, um julgamento moral tácito, latente na alma de todo ser humano: morrerá pelo acaso, por suas escolhas, pelo erro dos outros, ou terá sorte? Cada personagem morto por Anton Chigurh aceitou uma dessas escolhas. Se o diabo é Anton (vide o símbolo do capô de seu carro, no perfeito plano-sequência quando chega ao motel), o xerife Bell é um anjo caído. Lee Jones entrega com talento à personagem o peso insustentável da velhice. Decidido a encontrar Moss e protege-lo de Chigurh, Bell passa por uma desilusão cada vez maior, ao assistir à violência impune dos criminosos (drama criminal em qualquer nação da contemporaneidade). Não são apenas diálogos e silêncios (muito bem empregado nesta projeção, diga-se de passagem) que constituem o espetáculo em Onde os Fracos não têm Vez. Os aspectos técnicos do longa cadenciam todos os motivos inseridos no roteiro. A direção de arte impõe uma geografia seca e rústica, onde nem mesmo uma sombra aos pés de uma árvore parece segura. As ruas, becos e quartos de motéis enriquecem a perigosa solidão e o constante medo. O figurino assume um peso simbólico ao tornarem-se motivações dinâmicas no contexto diegético (as leituras possíveis que podemos ter a partir das trocas de camisa entre os protagonistas e jovens garotos). A edição de som prima por assimilar o caráter orgânico da composição de cada cena (os sons emitidos pelos atores e objetos cenográficos compõem uma trilha por si só). E a engenhosa fotografia que, por meio de sombras e da contraluz em vãos de janelas e portas, criando um universo de contrastes, ressalta ao olhos o mistério e o temor contido na alma de cada personagem (inesquecível o fade out que antecipa a morte de Moss). Como disse no início, Ethan e Joel Coen filmaram a tragédia de um homem para falar de todos os outros. Somos homens, que sentados em frente à tv todos os dias, vislumbramos as desgraças, o ódio e o preconceitos da sociedade. E como Churgh, Moss ou Bell, que puderam ver nela, desligada, o reflexo de uma janela aberta, em que um maravilhoso horizonte de esperança se descortina, podemos constatar que não passamos de sombras em um mundo real, sem forma definida, frutos do acaso. Lá fora, depois daquela janela está um mundo justo. Mas, infelizmente, ainda estamos acordados na realidade.