Olhares em números

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Leitura crítica: UP - Altas Utopias

Com UP – Altas aventuras, o estúdio Pixar/Disney alça vôos ainda mais altos na tecnologia de animação. Inserindo, mesmo que timidamente, técnicas de composição 3D, o estúdio surpreende mais uma vez na impressionante e minuciosa caracterização de personagens e cenários. E se o filme, com o novo suporte 3D, ganha no plano da imagem uma profundidade jamais vista, o que poderíamos dizer da profundidade temática do longa, que ao tratar temas complexos de maneira singela, divertida e emocionante, confirma novamente a consistência narrativa dos realizadores desse estúdio altamente criativo, que alcançam a façanha de produzir obras-primas ano a ano, como os já aclamados e antológicos: O Rei Leão (Disney), Toy Story 1 e 2 (Pixar), Irmão Urso (Disney), Rattatouile (Disney/Pixar), Wall-E (Disney/Pixar).
UP narra as aventuras de Carl Fredricksen, um vendedor de balões já idoso, que tem a oportunidade de realizar o sonho de uma vida inteira partilhada com sua mulher, a qual morre alguns anos antes da derradeira aventura. Após amarrar milhares de balões à sua casa e sair voando entre os edifícios da cidade, Carl parti rumo às Cataratas do Paraíso, lugar selvagem incrustado no meio de uma floresta da América do Sul. Durante a viagem, tem a singular companhia do garotinho Russell, aspirante a grande explorador e amante da natureza, cuja missão é ajudar um idoso. Juntos conhecem seres exóticos e amigos, enfrentam a cômica-selvageria de dobermanns adestrados e as artimanhas de um vilão egoísta e pretensioso.
Com um início arrebatador, UP – Altas Aventuras possui, em seus primeiros minutos, um coeso e comovente prólogo, que apresenta o passado de Carl, de sua infância a sua velhice, ponto de partida para as aventuras centrais do enredo. Rico em metalinguagens e seqüências cuidadosas com o efeito 3D[1], UP brinca, já de início, com novas possibilidades de representação, inserindo, num plano em profundidade, uma tela de cinema que projeta um filme em preto-e-branco, propiciando um sutil paralelismo temporal entre a infância da personagem e a própria história do cinema. A passagem do tempo na vida adulta do casal profundamente apaixonado e cheio de utopias dá peso dramático ao rápido prólogo. Magicamente montados em uma seqüência musical comovente, testemunhamos sonhos se construindo sob um céu de verão, frágeis e doces como algodão, precedendo momentos de profundo pesar e tristeza, que revelam as decepções e angústias de um mundo tão próximo do nosso (lembremo-nos da dificuldade de se guardar dinheiro quando o que se tem é apenas uma família humilde); cenas de alegria e de esperança surgem com o retorno aos encantos que se perderam na infância; mas ao fim, o peso da velhice, quando os passos ficam curtos e claudicantes, e a morte acaba por silenciar por um longo momento as vozes oníricas da varanda. São cenas de profunda beleza e impacto, que traduzem com inigualável apuro estético o marcante passado desse velhinho simpático e surpreendente chamado Carl Fredricksen.
Após as lágrimas iniciais, somos novamente tomados pelo criativo senso crítico dos realizadores, que assim como em Wall-E, não deixam de mostrar, através da contrastante tomada em que a casa antiga de Carl aparece incrustada em um grande centro urbano em desenvolvimento, como uma sociedade moderna é capaz de limitar e até mesmo segregar personagens dotados de sensibilidade e nostalgia. “Convidado” a se mudar para um asilo, após um pequeno deslize emocional[2], Carl procura nos balões um meio de fugir do sufocamento que a sociedade lhe impinge. E assim, dá-se uma das mais brilhantes e poéticas cenas do filme, quando uma casa alça vôo sustentada por milhares de balões coloridos, numa lúdica metáfora para os sonhos e as utopias capazes de sustentar e até mesmo elevar o todo que constitui a essência humana, suas memórias e seus desejos.
Esta transcendência da personagem inspira os personagens/espectadores mais sensíveis, e sem dúvida, causa a todos um estranhamento que, por um instante, rompe com a automatização do cotidiano. A emoção se amplia ao pensarmos que está também nesta cena, metalinguisticamente, a própria trajetória do estúdio Pixar/Disney: durante o rápido percurso feito por Carl entre os prédios da cidade, uma menina olha o extraordinário fenômeno pela vidraça de seu quarto, e dentro dele, encontramos a bola colorida de Toy Story; logo após, notamos uma família na calçada, e a mulher com o mesmo traçado da Sra. Pêra, de Os Incríveis; e mais adiante, os pássaros empoleirados na fiação elétrica, saudosa lembrança do curta For the Birds.
A relação entre Russell e Carl proporciona uma singular interação dos discursos da criança e do idoso, que, muitas vezes conflitantes, acabam por revelar ao longo da projeção, e principalmente em seu final, o quanto podem ser complementares e necessários um ao outro.
Surpreendentemente, as aventuras vivenciadas por Russell e Carl embasam uma ruptura muito interessante com certa abordagem conservadora da velhice vista em muitos filmes de gênero.

Com uma construção temática repleta de simbologias, UP nos apresenta ricas metáforas visuais em sua concepção de planos e seqüências. Abaixo, seguimos com uma rápida leitura da narrativa do filme centrando-se apenas na relação entre Carl, um homem já idoso e cheio de memórias, e sua própria casa, que carrega durante toda a jornada.
Podemos considerar a casa de Carl Fredricksen a própria extensão de seu “eu”. A casa resulta na materialização de suas memórias e desejos, e que o constitui como sujeito. Suas lembranças espalham-se pelos cômodos, revelando, a cada seqüência de ação da personagem, o forte apego que mantém por cada objeto, carregado de traços do passado. Notemos como Carl reage ao ver um homem desconhecido mexendo em sua caixa de correio, ou na incrível cena da tempestade, quando, em meio aos ventos fortes, lança-se contra as paredes a fim de segurar os quadros e fotos de sua esposa, construindo belíssimos planos que metaforizam os momentos de angustias e medos por que passara em sua vida, e nos quais sua mulher constituía seu apoio e sua segurança.
Como já assinalei em parágrafos anteriores, a incorporação de balões coloridos à casa insere-se como a própria materialização das utopias de Carl. Segundo Leonardo Boff, teólogo e sociólogo, a utopia é um conjunto de imagens e motivações que inspiram práticas novas na realidade constituída por cada ser humano. A realidade, segundo o autor, nunca é dada, é sempre feita. A utopia pertence à realidade, ao seu caráter impossível. Se não buscarmos o impossível, afirma Boff, não realizaremos o possível.
Numa lúdica incorporação do caráter etéreo dos sonhos e das fantasias, suas utopias infladas mostram-se capazes de sustentar todo o peso de suas memórias, elevando-as a um estado de movimento, que por sua vez, visa à mudança. Carl mantinha-se preso às recordações de uma longa estória de amor e de companheirismo que vivera com sua mulher, as marcas dessa vivência espalhadas pela casa o mantinham em um estado de estabilidade e alienação física e mental. Esta condição de estaticidade, intensificada quando o protagonista é obrigado a deixar seu lar e todas suas lembranças, faz com que Carl se volte para suas próprias utopias, que, por sua vez, acabam o impulsionando, a partir de seu estado imanente de consciência. O movimento ocasionado pela impulsão/elevação dos balões permite a realização de novas possibilidades de vivência da realidade, que antes se mantinha oculta pelo cotidiano estável e retroativo.
Durante as aventuras a bordo de sua casa voadora, nos surpreendemos com a vitalidade de Carl, que mesmo com todas as limitações físicas da velhice, mostra-se avesso à sua postura no início da projeção, quando se colocava aversivo a simples necessidade de descer uma escada (a caracterização das personagens é brilhante ao retirar das próprias limitações físicas do protagonista possibilidades cômicas, como nas cenas em que Carl estrala a coluna ao se levantar da cama, sente a mão tremer ao cortar um cabo, ou tem os membros travados durante uma luta com seu antagonista, que também passa pela mesma situação).
Chegando ao clímax da narrativa, novamente UP nos presenteia com uma cena de extrema sensibilidade e profundidade dramática: Carl, após ver o pássaro ser levado pelo vilão, resigna-se frente ao pedido de ajuda de Russell, e adentra sua casa, solitário e conformado. A casa está toda bagunçada, refletindo o próprio estado psíquico da personagem. Carl encontra o caderno de “viagens/memórias” de sua mulher e, ao virar as páginas, recorda todos os sonhos e desejos que o aproximaram na juventude, e percebe, enfim, que foram esses mesmos sonhos que os fizeram viver toda uma vida juntos, e todos os momentos alegres e tristes significaram juntos uma busca real pela felicidade. Carl compreende que as lembranças de um passado imanente e inalterável constituem pesadas amarras aos sonhos e utopias que sustentam e elevam seu “ser”. Na cena que se segue, a personagem despeja fora da casa (e de si mesmo) tudo que materializa tais lembranças. As utopias novamente o elevam, num movimento que se pretende transformador, inteligentemente desenvolvido no desfecho narrativo, quando Carl participa do salvamento de uma ave-mãe, aprisionada pela mesquinhez e arrogância de uma personagem, cujo ego tornara-se tão mais pesado quanto as amarras do passado que o precede.
É interessante observar como se dá a morte do vilão. Amenizada em seu caráter violento, a cena da queda da personagem apresenta-se numa panorâmica aérea, onde poucos balões coloridos acompanham o corpo do antagonista, confirmando, em seu caráter simbólico, a falta de utopias e sonhos capazes de sustentar um ser tão envolto pelos traumas e angústias do passado.
UP nos apresenta a instigante proposta da Utopia. A partir do sem sentido, inventa-se um sentido novo. Utopias não são realizáveis ou reais, são verdades interiores que carregamos por toda a vida, e que nos impulsionam a continuar vivendo. Carl Fredricksen, já idoso, não tem sua morte narrada no filme, muito além disso, transcende a existência material de sua antiga casa, e numa possível metáfora final, se suspende aos céus usando um enorme dirigível.




[1] A transposição de quadros e a seqüência de planos são mais cuidadosas nos filmes 3D , uma vez que, com o efeito de profundidade, o corte brusco entre as tomadas pode causar certo desconforto ao espectador.
[2] Nota-se, na cena que segue ao incidente com o operário, quando Carl pede por ajuda em frente sua casa, num clamor contido para a própria mulher, o plano noturno e frio, composto pela belíssima fotografia, privilegiando uma tênue, mas calorosa luz que vem de alto, confirmando o forte espiritualismo da cena.
BOFF, Leonardo. O Despertar da Águia: o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.