Olhares em números

sábado, 26 de dezembro de 2009

Comentário Crítico do filme "Avatar"


Desde os primeiros comentários sobre sua produção, Avatar aparecia no cenário das grandes produções de final de ano com a promessa de ser um marco tecnológico da produção cinematográfica contemporânea. A nova empreitada do premiado diretor James Cameron não só confirma o que antes eram apenas rumores e especulações, como demonstra a maturidade de seus realizadores, que, ao criarem uma obra riquíssima tanto em sua concepção visual quanto em sua elaboração temática, comprovaram que não é apenas de espetáculo que se fazem grandes obras da sétima arte.

De início, falemos, rapidamente, do espetáculo visual concebido por Cameron. Avatar nos apresenta um novo mundo, totalmente criado digitalmente, cujas imagens revelam uma riqueza de detalhes sem precedentes na história do cinema. A diversidade da flora do planeta Pandora, a concepção anatômica e motora dos seres Na’vi e a sempre presente expressividade facial desses seres são fabricadas em suas minúcias, revelando nos matizes fotográficos das seqüências um primoroso trabalho estético com as cores e com a luz, criando um belíssimo mosaico de tonalidades florescentes, que condensam no plano de expressão, com impressionante poeticidade, a tecnologia e a Natureza, dois pólos parcialmente antagônicos no plano temático do longa. A direção de arte mostrou-se extremamente sensível ao conceber o planeta Pandora como um cenário admiravelmente belo e instigante aos olhos (não à toa, o filme se passe totalmente inserido neste mundo, visto que o nosso planeta Terra soaria sem graça e talvez sem vida se aparecesse durante a projeção, o que seria uma ironia pertinente para o momento atual). Em harmonia com uma montagem precisa e muito bem composta, a cenografia nos revela, gradativamente, as maravilhas de Pandora, encantando o espectador com a exuberância natural, e por vezes mística, dos espaços por onde caminham as personagens. Com uma narrativa muito bem montada e executada visualmente, o espectador rapidamente identifica-se com o olhar deslumbrado do protagonista, e à medida que o filme avança, contemplativo em sua primeira metade, da-se o tempo necessário para o envolvimento emocional do espectador com a cultura e com o pensamento do povo nativo, além de provocar uma identificação quase fraternal com a Natureza viva que acolhe os Na’vi, fazendo com o que nós, espectadores, num, talvez, inusitado sentimento de orfandade, nos apeguemos àquele mundo, torcendo por sua preservação e por sua existência. Finalizando esta primeira leitura dos aspectos técnicos do longa, não há como não mencionar a trilha sonora composta pelo sempre colaborador de Cameron, James Horner (True Lies e Titanic), que, pontuando cada seqüência com leveza e economia, compõe uma trilha permeada por ritmos tribais, em que se preza tambores e flautas na marcação sonora de seqüências como as que envolviam alguns dos impressionantes rituais do povo Na’vi. É interessante perceber, também, como Horner faz referência ao seu premiado trabalho em Titanic, frisando um momento de eminente catástrofe para os nativos, o ataque à árvore mãe, utilizando-se de uma composição semelhante a usada na cena em que o transatlântico está prestes a se chocar com um iceberg, no filme de 1997.

Há tantos aspectos e impressões a serem discutidas em Avatar, que um breve comentário como este significa apenas um simples intróito para a apreciação de uma produção do mais alto nível estético e filosófico como a que se apresenta.
Gostaria de destacar que Avatar não só marca a consolidação da tecnologia 3D no cenário do entretenimento, sendo a melhor obra produzida neste suporte até agora, como homenageia grandes produções que também marcaram época na história do cinema moderno. Florestas tropicais, aparentemente inóspitas, que guardam desde seres gigantescos e agressivos a seres pequenos, ágeis e não menos ameaçadores, fazem lembrar o Mundo Perdido criado por Steven Spielberg na continuação de Parque dos Dinossauros; a alta tecnologia bélica a serviço de um governo imperialista que não hesita em usar todo poderio militar contra nativos nos remete diretamente às grandiosas batalhas estelares da trilogia Guerra nas Estrelas (episódios V e VI, principalmente), de George Lucas; e todos os questionamentos filosóficos por trás da manipulação tecnológica das mentes humanas nos levam diretamente ao simulacro psico-técnico de Matrix, dos irmãos Waschowski. Assim como acontece com Apocalipse Now, que citarei logo a frente, a referência à Matrix é direta, aparecendo desde os procedimentos utilizados para o controle mental dos avatares até a concepção de sequências dramáticas como a que nos mostra Jake Sully, protagonista do longa, acordando na criogenia (podemos pensar nas extensas colheitas humanas de Matrix) e os desmaios repentinos dos avatares quando desligados. O realizador de Titanic, uma das obras mais caras da história do cinema, não poderia deixar de fazer referência a si mesmo, em um primoroso exercício de estilo, construindo a seqüência da queda da Árvore-Lar dos Na’vi com uma montagem ágil que, a partir de planos detalhe das expressões de dor e sofrimento dos nativos, entrecortados pela tomada principal do desmoronamento do imenso tronco, revelou o terror e a grandiosidade do momento: a queda da Árvore-Lar é uma citação da técnica empregada por Cameron na filmagem da seqüência em que a popa do Titanic fica totalmente vertical e, ao se partir, tomba ao mar.
Por último, citarei a influência de Apocalipse Now, cuja referência está desde algumas falas proferidas pelos militares como “a morte vem do alto” e “Valquíria, está na escuta?” à sequência em que vemos fileiras de aeronaves, com suas hélices aterrorizantes, se direcionarem para o território ocupado pelos nativos Na’vi. Além da referência direta ao longa, temos também a influência de sua temática, a Guerra do Vietnã, perdida pelos Estados Unidos, e cujo motivo da derrota foi também atribuído ao território de floresta tropical fechada, muito bem conhecido e utilizado pelos vietnamitas, atribuição esta reiterada em Avatar pelo próprio protagonista, quando este fala aos seres Na’vi.

Partindo agora para um segundo momento de leitura e apreciação crítica de Avatar, entraremos na concepção temática do longa, em que roteiro e argumentos visuais se fundem, oferecendo um amplo campo de sentidos e significações para as seqüências do filme (não irei resumir o enredo do longa aqui, por motivos de extensão do texto e pensando, também, que todos que chegaram até aqui na leitura já tenham assistido ao filme).
Com um enredo linear, sem grandes reviravoltas dramáticas ou tramas paralelas, Cameron privilegia uma estrutura simples, porém eficaz de narrativa, trabalhando com motivos temáticos bem conhecidos do grande público de cinema, presentes em filmes como Pocahontas, Dança com Lobos, Irmão Urso, entre outros. Com esta escolha, os roteiristas potencializaram o envolvimento emocional e intelectual dos espectadores com todas as questões apontadas ao longo do filme, partindo da identificação do público com os elementos motivadores da ação da personagem protagonista. A narrativa de Avatar estrutura-se na construção da figura do herói, que não é apenas metáfora para a busca pela Identidade perdida ou pela significação de um mundo desconhecido, mas também funciona como ponto de reencontro de um elo perdido do Ser com a origem do Ser. Acompanhamos a trajetória de um homem que traz em si as seqüelas de uma civilização destrutiva, e sua incapacidade motora demonstra, talvez, a deficiência de toda uma sociedade incapaz de se auto-sustentar (pensamento ecológico, quem sabe passível de relativizações, mas que também revela ecos da brilhante animação Wall-E e a cena em que o Ser humano recomeça a andar com as próprias pernas). A função narrativa da vilania, ou antagonismo, é paulatinamente assumida pela organização político-econômica dos militares humanos, enquanto que ao herói cabe o cumprimento de um ritual de iniciação, em que sua essência humana é purificada, rompendo as amarras cognitivas impostas pela socialização humana e revelando uma nova percepção da relação do seres com a Natureza, mãe e provedora. A harmonia do mundo encontra-se na compreensão da intrincada relação do Ser com tudo que o envolve e o determina.
Em Avatar, Pandora pode possibilitar a reafirmação da natureza humana, retomando os motivos históricos das devastações imperialistas ao novo mundo, como a colonização espanhola da América ou a marcha americana para o oeste; ou, talvez, apontar para a uma catártica redenção do Ser humano, em que o retorno as fontes tribais de relação do humano com a Natureza seja novamente sacralizada e reafirmada como fonte primeira de conhecimento do Ser em si mesmo e no outro. Uma das expressões mais belas e profundas do pensamento hinduísta está contida no roteiro de Avatar, “eu vejo você”, frase que, quando proferida, revela um olhar sábio e sensível sobre a essência do humano visto de fora de si mesmo. É importantíssimo notarmos a brilhante metáfora visual criada com as raízes das árvores e a rede neural do cérebro humano, formadora de nossas memórias.
Concluo este breve comentário crítico sobre o filme Avatar apresentando uma questão para subseqüentes comentários e leituras dessa extraordinária obra de James Cameron: na relação das memórias históricas e psíquicas estaria o eixo fundamental para a construção do Ser humano, que, em posição fetal, morto aos olhos de uma humanidade degradada, espera acordar em um novo mundo e, também, em um novo Ser.

Como falei já no início deste texto, são tantos os caminhos que poderíamos percorrer ao acompanhar atentamente os rastros questionadores deixados ao longo de Avatar, que este simples comentário crítico não dá conta de compreender-se sem a ajuda de novas leituras e discussões.