Olhares em números

domingo, 5 de junho de 2011

A poesia com instante de vida: um prévio comentário sobre o que esperar de "A Árvore da Vida", de Terrence Malick



A Árvore da Vida, novo e aclamado longa-metragem de Terrence Malick (Cinzas do Paraíso e Terra de Ninguém), ainda inédito por aqui, se apresentará nos cinemas uma produção singular porque poética ou poética porque singular? Evidentemente esses dois conceitos, aplicados às manifestações artísticas, adquirem implicações muito maiores do que se pretende esta pequena postagem, mas, neste caso, mostram-se relevantes para um prévio comentário sobre o filme, em que se delineiam impressões imprecisas, porém irresistíveis, sobre qual é e como se mostrará a estória concebida por Malick, seus co-roteristas e parte do elenco.
Da estória narrada sabemos muito pouco. Gira em torno de um núcleo familiar dos anos 50, no subúrbio americano. O pai (Brad Pitt) traduz-se em uma figura aparentemente rígida e rigorosamente lúcida; a mãe, mulher meiga e sensível, não deixa de atribuir, a cada lição ou reprimenda aos filhos, uma maternal carga de afeto; e os irmãos, ainda crianças, trazem dúvidas e indignações dissimuladas na pureza e inocência de uma risada ou de uma lágrima. A morte, como perda e desespero, irrompe na trama, conduzindo ao questionamento e a angústia da vida adulta e a busca de um sentido perdido, ou jamais, verdadeiramente possuído. Jack, o irmão mais velho, como um filho pródigo, volta-se para um passado, somente presente na memória, à procura de um futuro sentido para vida.
A singularidade do filme de Malick já se insinua nas poucas imagens que ainda temos dele. Seus cartazes são pequenas obras-primas fotográficas:


O trailer é grandioso: processo estético que nos apresenta uma realidade que não é outra senão a nossa, no entanto, singularmente revelada em seus detalhes, vivenciada em intensas sensações, pressentida em um fluxo contínuo de imagens estranhamente familiares e simplesmente misteriosas, capazes, em sua composição poética, de organizar o caos do mundo e descegar os sentidos humanos. Como toda obra de arte, particularmente a cinematográfica, é, e assim deve ser.



No início, a escuridão. Faíscas de luz delineiam uma etérea massa vaporosa. Do vermelho escarlate de uma nebulosa ou de uma nuvem cósmica em brasa viva, irrompe a luz. Algo toca a Terra. O mar. Árvores se alongam em direção a um céu luminoso. “Existem duas maneiras de se viver: a maneira da natureza e a maneira da graça.”. A Árvore da Vida propõe correspondências misteriosas entre a grandiosidade do cosmos e a efêmera existência humana, que, observada em comunhão com o natural, sabe-se transitória, como um sopro ou uma faísca, aparentemente finita e angustiantemente insondável. Quando nos permitimos despertar o olhar sonolento que mantemos durante toda a vida, conformado à simples aparência do mundo e aos espelhos onde emolduramos nossas crenças e idealismos, a atenção se volta para os detalhes, estes, pequenos lampejos, reveladores de uma totalidade que se apresenta em cada parte fugidia da vida. E então, quando a retina se expande e o tempo se dilata, o espaço se contrai pela atenção (ação de fixar o espírito em algo; concentração da atividade mental sobre um objeto determinado). E da movimentação cosmogônica das primeiras imagens, temos a expansão do olhar. A atenção de um pai que envolve o pequenino pé de seu filho entre as mãos, ao fundo uma fina cortina sobre a luz, em uma atitude de encanto e curiosidade, protege a fragilidade humana ainda intocada pelas asperezas do tempo e do mundo. Um olhar infantil toma o primeiro plano. O bebê traz a importante lição da singularidade. Sua percepção do mundo é permeada pela atenção e pelo interesse, pois tudo se mostra estranho e singular. Olhar as imagens que se apresentam como se acabassem de serem criadas, e só no momento do olhar sua existência torna-se plena. “Nós temos que escolher qual delas seguir”. O estado de graça é instante de alumbramento, quando fenômenos naturais e corpóreos atravessam a superfície espessa das vidraças da alma, projetando, na disformidade aparente de uma ilusão ótica, uma superfície palpável que nos permite enxergar o mistério. “Você terá crescido antes dessa árvore ficar alta”. O crescimento dá-se pela irrefreável necessidade de conformação, alienação e automatização da vivência do mundo. Um caminhar de sapatos e passos imitados sobre a fruição orgânica da grama. Nomear as coisas do mundo e esquecer a impressão interessantemente desconhecida que elas causam. Observar a vida refletir-se em cada semente germinada e constatar a efemeridade da existência humana (neste plano, mãe e bebê, uma muda de árvore sendo plantada, uma criança que observa tudo, e o pai, após fincar a pá na terra, a regar o solo remexido, estabelecem uma comunhão poeticamente cotidiana entre a natureza e o ser humano). Pai e mãe, ao observarem seus frutos, em uma posição superior, confundem-se com o sol e com as árvores, regentes da espantosa sinfonia do passar dos tempos (não à toa, o nome do diretor aparecer logo em seguida). E assim, um carrossel de imagens irrompe na tela, ritmado pela impactante trilha sonora. A harmonia do mundo se figura nos fugidios sinais da graça, quando ser humano e natureza permitem se tocar mutuamente (o plano da mãe com a mão estendida servindo de repouso à borboleta é revelador). Mas algo de obscuro e sombrio, pois inexplicável e incontrolável, constitui o Ser humano. Dentro de sua própria casa, ele não é senhor, não consegue iluminar todos os cantos, pois em alguns deles ele próprio se constrói através das sombras. “É preciso uma vontade feroz se quiser ser o primeiro neste mundo”. A selvageria, a contestação, os impulsos que trazem dor e medo são raízes profundas que permitem o crescimento. Um crescimento rumo à morte, onde a dúvida e a inconstância não deixa que se enxergue o fim, e a completitude que se prefigura no tempo. “Eu sempre quis que você fosse forte. Um homem completo.” (neste ponto, instaura-se no trailer um movimento que será repetitivo, o caminhar para dentro do cenário, rumo ao ponto de fuga, no centro do quadro construído pela câmera objetiva). Pai e filho se confrontam, se opõe em lados opostos do quadro fílmico. Entreolham-se. E como num espelho que duplica o ser em uma imagem levemente distorcida, pai e filho projetam-se um no outro, como imagens oblíquas de si mesmo. O pai exige do filho algo que lhe escapa, o filho busca no pai algo que ele talvez não possa oferecer plenamente. O conflito se estabelece e, novamente, o tempo se expande. “Pai... mãe... vocês sempre estiveram do meu lado (em conflito, dentro de mim)” “Vocês sempre estarão” (o recurso sonoro utilizado neste trecho é impactante, não haveria outra forma de intensificar o valor semântico e a carga emocional dessas frases, se as mesmas não fosse sussurradas). A transição do quadro é belíssima. Uma justaposição de planos que revela a atemporalidade de uma personalidade marcadamente sensível e angustiada. Atores se complementam em suas expressões: o rapaz que vive Jack na adolescência e Sean Penn na vida adulta. A natureza exuberantemente verde é substituída pela profundidade geométrica e monocromática de um espaço urbano. E novas metáforas se constroem plano sobre plano, integrando, em gestos intimistas e abundantes, o ser humano e a natureza no escoar dos tempos. Novamente, a grandiosidade do derretimento de uma geleira (ou vazão de uma cachoeira?) se reflete no escoar da água em uma torneira. Um olhar para as lembranças, à memória de um pai, que vê o filho à soleira da sua porta. Que o toca envolto por um fino tecido opaco do tempo e do espaço que os separam. Vislumbra-se o vertiginoso desdobrar-se da memória, que se faz na desconstrução dos alicerces racionais da perspectiva, deixando as sombras se alongarem sobre uma realidade antiga. “Algum dia você vai cair e chorar. E então vai entender tudo.” “Todas as coisas”. E, em um último alento, depois da queda e da dor, os olhos se voltam para a luz quente e confortável da infância. Do abajur ao pé da janela. Do caminhar com o pai em direção ao sol. Do rosto terno e afetuoso da mãe, banhado em luz. E o futuro... o começo do fim de tudo... a distensão dos espaços e a compressão do tempo. Sucedem-se planos onde o movimento de travelling (deslocamento da câmera) para frente, além de estabelecerem um ritmo visual entre as cenas, revelam personagens em busca de um ponto de luz, que se origina do horizonte ou de uma janela, e, em seguida, se deslocando, seguindo o mesmo movimento, ruma a uma floresta e um caminhão de fumaça. A busca conduz ao desconhecido, ao nebuloso, ao impalpável. “Guie-nos até o fim dos tempos.”.
E então, ao fim... dois rápidos planos nos chamam a atenção, nos permitindo concluir, antecipadamente, o que poderemos encontrar em A Árvore da Vida: a arte cinematográfica possibilita o simbólico, permite reorganizar a realidade, e de tal forma amplificá-la, que não se vê somente um menino atravessando uma porta, mas uma ação de atravessar uma porta que liquefaz a percepção do espaço, que mistura o movimento de nado ao de flutuar, tudo enquadrado por uma câmera que desautomatiza a perspectiva, ampliando as dimensões de afeto e de efeito entre o real e o imaginário apresentados no plano. Trata-se de um movimento de passagem, de transcendência, de morte e vida, de crescimento e perda... a infância que fica, suspensa na memória de um passado reconfortante. O fim é luz. Intenso clarão, obtuso, espiralado: como um próximo plano nos mostra. Uma espiral em vitrais de mosaicos que, quanto mais próximos do centro onde se encontra a luz, mas difusos e opacos apresentam seus elementos constituintes, tornando-se cada vez mais uniformes, como se a materialidade do corpóreo se revelasse transpassada pela espiritualidade transcendente da alma.
“A não ser que você ame sua vida passará como um flash.”. Indo além dos temas religiosos suscitados pelos elementos de espiritualidade cristã presentes no filme, A Árvore da Vida propõe-se a algo maior que a simples busca pelo sentido da vida. Permite, em última instância, que se toque o mistério da vida, expandindo-a, singularizando sua vivência. E assim se revelará o valor poético do filme de Terrence Malick, uma espiral dialética que permite vivenciar com extrema lucidez os mistérios do mundo e do ser humano, tornando-os palpáveis aos sentidos, sem jamais desfazer seu silêncio e sua plenitude com explicações teológicas ou com razões abstratas, que tanto necessitam nomear as coisas do mundo.

"Ovo de galinha" de João Cabral de Melo Neto

Ser e Sertão na poesia de João Cabral de Melo Neto: “Ovo de galinha” e o carpinteiro da palavra


escrito por Giuliarde de Abreu Narvaes



* o texto que se apresenta é fragmento de um artigo, que será publicado na íntegra no final deste ano.  


link para a leitura do poema na íntegra: http://www.releituras.com/joaocabral_oovo.asp

É de natureza introdutória pensar a forma ou a expressão poética de João Cabral de Melo Neto como um terreno seco, árido, cuja luz intensa do sol sertanejo é faca cortante, que destitui o domínio do Eu sobre o substrato poético e que rompe a fluidez de uma cadência musical como de um verso romântico ou simbolista. O conteúdo da poesia cabralina também é divergente a certa tendência poética da geração de 45, cuja configuração, segundo Haroldo de Campos, no ensaio “O geômetra engajado”, é de “uma poesia feita de sobre-realidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim dela é comunicar dados sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte mais leve e abstrata dos dicionários.” (CAMPOS, 1976). João Cabral restitui na linguagem poética do verso o peso de uma realidade impregnada de matéria bruta, exterior ao Ser, mas não alheia a ele. Ao construir um sertão poético despojado de subjetivismos, de razões transcendentais, de um espiritualismo inefável, João Cabral faz da linguagem poética um espelho de si mesma, refletindo no produto formal estático do poema sua própria natureza dinâmica de composição, revelando-a como um meio de apropriação da realidade imanente, a fim de apresentá-la em seu estado mais concreto e espesso (cf. LEITE, 1982), destituída de qualquer idealização ou estetização.
A linguagem poética questionando a si mesmo corresponde ao que Roman Jakobson (1975) caracterizou, no ensaio “Linguística e Poética”, como função metalingüística da linguagem. Em João Cabral, tal função é questionadora do processo que faz da linguagem utilizada pelo poeta, uma linguagem poética. Segundo Jakobson, “A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função dominante, determinante” (JAKOBSON, 1975), que promove o caráter palpável dos signos, aprofundando a dicotomia existente entre o signo e o objeto. Na função poética, ocorre a projeção do “princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.” (Ibidem), ou seja, a seleção de palavras e de seus elementos plásticos em nível sonoro e semântico é recurso constitutivo da sequência sintática combinada e encadeada por tais elementos. Para Jakobson, qualquer sequência fonológica ou semântica tende a construir uma equação, “a similaridade superposta à contigüidade comunica à poesia sua radical essência simbólica, multíplice, polissêmica (...)” (Ibidem). A poeticidade de um texto literário é avaliada pela dominância de tal função, em que irá prevalecer a reiteração regular de unidades equivalentes num fluxo verbal. No ensaio “O Dominante”, Jakobson (1983) esclarece que “o elemento que torna específica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura toda e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inescapável, dominando todos os elementos e exercendo influência direta sobre cada um deles.” (JAKOBSON, 1983).
Na poesia de João Cabral o predomínio da função poética leva a uma potencialização das relações metalingüísticas construídas pelo poeta. A fim de tornarmos concretas tais relações abstratas do fazer poético, seguiremos com a análise de um poema cabralino: “Ovo de galinha”, contido no livro Serial (1961).
Segundo Haroldo de Campos, o livro Serial é marcado pela composição em séries padronizadas (padronização do módulo compositivo, mesmo tema e mesmo número de quadras em todos os poemas), que não é concebida pelo autor como um produto industrial, mas um produto artesanal, “no sentido de objetos feitos a mão por um artesão, que nunca os faz todos iguais, mas os labora e elabora, tirando variantes minuciosas e sutis sob a aparente similitude de fatura.” (CAMPOS, 1976).
No poema “Ovo de galinha”, como o próprio título sugere, há um processo de metaforização do objeto da realidade natural, singularizando-o em signo poético e, a partir de seu aspecto desreferencializado, instaura-se uma crítica tanto à própria percepção de tal elemento na realidade fora do texto, quanto à sua função metapoética reveladora do estado dos signos dentro do texto. Para Sebastião Uchoa Leite, no ensaio “Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto”, a poética crítica cabralina estabelece a semantização das imagens pelo uso paradigmático da metáfora (cf. LEITE, 1982). No rigoroso horizonte árido dos versos, a abundância fértil dos significados poéticos nascem da leitura verticalizada, as imagens surgem a partir da decifração do código estabelecido. Segundo Leite, “a uma decifração do novo código, corresponderá uma re-recodificação do processo poético.” (LEITE, 1982)
Logo na primeira quadra do poema em questão, instaura-se uma relação metapoética entre o olhar e a estrutura maciça dos versos por meio da leitura metafórica e simbólica do elemento ovo:

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
Maciçamente ovo, num todo.

A compactação e a integridade da matéria verbal são mimetizadas pelas estruturas nominais e sonoras que se emolduram no final dos versos segundo, terceiro e quarto (um ovo; unitária e num todo; estruturas iniciadas por nasalização e acentuadas na penúltima sílaba). A forma em quadra da estrofe mantém concreto esse valor temático. O olho, assim como a mão aparecerá duas estrofes a frente, é órgão de sentido, responsável pela percepção do Ser no mundo. O olhar aparece neste poema como gesto metonímico de um caminhar entre as palavras, sob a aridez da folha branca, coberta de cascalhos verbais cristalizados, o olho percorre um terreno áspero, difícil, e esbarra nos imprevistos rugosos das construções imagéticas.

Sem possuir um dentro e um fora,
Tal como as pedras, sem miolo:
e só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

Adensando ainda mais as relações metalingüísticas entre os elementos temáticos e suas disposições formais como signos poéticos, João Cabral estabelece uma relação reveladora entre forma e conteúdo em sua poesia: aos olhos, o ovo, assim como o poema, estrutura metaforizada nesta relação, aparece apenas em sua forma firme, rígida, e estática, revestindo e dando forma a algo que é desconhecido pelo olhar. Tal relação entre forma e conteúdo é essencialmente intrincada no trato poético: o conteúdo motiva a forma, assim como a forma potencializa o conteúdo, e o inverso também é verdadeiro. Portanto, não há separação completa entre o fora, casca branca da página, e o dentro, substância imagética dos versos. É verificável que as palavras dispostas no verso delimitam suas próprias fronteiras: é miolo a substância significativa do verso, mas não menos significativo é o contorno, visto que a função poética determina tais projeções imagéticas nas relações metafóricas, tanto no plano da expressão quanto do conteúdo.

Que nele há algo suspeitoso

Com este verso se encerra a terceira quadra do poema, suscitando uma fundamental indagação metalingüística acerca da natureza estranha ou incomum do verso poético. O efeito de singularização atribuído a todo signo que passa pelo processo de equivalência dos eixos de seleção e ordenação leva a uma redescoberta do signo verbal enquanto tal, destituído de referencialidades e realidades por vezes ideais e abstratas.

Que seu peso não é o das pedras,
Inanimado, frio, goro;
Que o seu é um peso morno, túmido,
Um peso que é vivo e não morto.

Após a leitura dos versos acima, um retorno ao título e a outras reiterações da palavra ovo mostra-se interessante para uma nítida percepção das relações de equivalência entre os eixos de semelhança e contigüidade: nota-se que no signo poético ovo há uma compactação de todo o desenvolvimento temático do poema. A forma unitária e maciça que reveste o ovo se assemelha a perfeita forma do círculo, figura geométrica predileta dos parnasianos. Esses poetas acreditavam que para atingir o preciosismo formal do gesto sem defeitos ou sem imperfeições seria necessário um intenso trabalho de ourivesaria estética. Tal concepção é reapresentada nos versos de João Cabral adquirindo outros contornos: “o ovo revela o acabamento / a toda mão que o acaricia,” (v. 17-18); “E que se encontra também noutras / que entretanto mão não fabrica:” (v. 21-22). A “pura forma concluída” não é produto de mãos humanas, que apenas podem tocá-la. Na poética cabralina a percepção de realidade se dá, não pela poetização dos elementos naturais, mas pela revelação da carga semântica dos elementos que compõe a realidade exterior ao Ser, sendo esta naturalmente construtora e modeladora dos potenciais signos poéticos do mundo. O ovo guarda em si mesmo uma carga simbólica revelada pelo trato poético formal do próprio signo: a consoante v está emoldurada pela vogal o, que se apresenta em seu hermetismo vazio de forma perfeita, envolvendo um elemento fértil de carga semântica. O v é consoante lábio-dental que necessita se ligar a outros elementos sonoros a fim de gerar sentidos. É produto em gestação, é miolo significante à espera das possíveis interações semântico-estruturais que possam ocorrer no espaço discursivo dos signos verbais. Essas potenciais interações que o próprio signo natural engendra são reveladas na composição ordenada dos signos poéticos: João Cabral revela o que se oculta partindo da própria percepção automatizada do Ser. A relação de contigüidade possível entre os elementos ovo, vida e vivo, desvela uma singular relação semântica entre o signo ovo e o objeto natural da realidade física: ambos guardam dentro de si o elemento que gera a vida.
A partir da seleção paradigmática dos signos, estabelece-se, portanto, na composição sintagmática do verso, uma reveladora objetividade do signo natural. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi (1980) salienta a característica da poesia cabralina de voltar o olhar aos puros signos naturais. Segundo o autor, a poesia de João Cabral de Melo Neto “tem dado um exemplo fortemente persuasivo de ‘volta às próprias coisas’ como estrada real para apreender e transformar uma realidade que, opaca e renitente, desafia sem cessar a nossa inteligência.” (BOSI, 1980). A metáfora poética estabelecida em “Ovo de galinha” transporta, como diria Sebastião Uchôa Leite, em relação a outro poema de João Cabral, a carga semântica do organismo vivo, estabelecendo uma vertical penetração simbólica na realidade.
No entanto, em João Cabral, tal construção simbólica revela-se inicial, ponto de partida para pensar não apenas a atividade criadora do poeta em si mesmo, mas na sua intrincada relação com a “apreensão sensível dos dados da realidade concreta” (LEITE, 1982). Segundo Uchôa Leite, leitor algum pode deixar que se enfraqueça a capacidade de captar e dominar plenamente tal realidade.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

O poema, revestido pela forma franca e branca da folha de papel, engendrado pela arquitetura rigorosa e áspera do trato formal do verso, carrega em si, num interior repleto de fertilidades semânticas e simbólicas, o gesto aguçado e engenhoso do poetar, do perceber a paisagem e os objetos da realidade e reapresentá-los como singular, autêntica e inspiradora, matéria poética pulsante, viva e instigante. Matéria capaz de transportar o leitor/errante para um aparente terreno desértico e estéril dos signos verbais, que, no entanto, oculta férteis oasis semânticos, fluídos poéticos de alumbramentos.
Neste breve percurso pela poética de João Cabral de Melo Neto, pretende-se compreender que a pedra e o arquiteto, metáforas utilizadas por Cabral em relação ao signo poético e ao trabalho do poeta, respectivamente, são pontos de partida para um percurso exaustivo pela espessa e áspera composição poética cabralina. João Cabral não é arquiteto, muito menos sua poesia é pedra. O ponto tensivo está menos no rigor formal da composição versus a fertilidade expansiva da valoração semântica dos signos, e mais na ação poética criadora que devolve ao Ser humano leitor, a reveladora convivência com as coisas vistas por dentro. Assim como a arquitetura constrói portas de abrir, João Cabral constrói “... portas abertas, em portas; / casas exclusivamente portas e tecto.” (MELO NETO, 1979). A palavra tecto tem origem grega, téktón, e designa carpinteiro, aquele que lida com a matéria viva, fértil, pulsante. Observemos a última estrofe de “Fábula de um arquiteto”, contido no livro Educação pela pedra (1962-1965):

Até que, tantos livres o amedrontamento,
renegou dar a viver no claro e aberto.
onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

O trabalho poético aparece como aparente trato de ocultamento, desfazendo a clareza e a facilidade de entrada no substrato simbólico da poesia, mas, o que se revela na metapoesia cabralina é a necessidade de transição, de deslocamento para um estado imanente de existência. O termo amurando, originado do verbo amurar, que significa “prender, tesar com voltas as amuras (de uma vela) para que a vela receba bem o vento”, estabelece perfeitamente tal relação de ampliação semântica dos termos. As reiterações intensificam-se na poesia de Cabral, e potencializam o valor semântico dos objetos: a vela, signo poético final no poema “Ovo de galinha”, reitera-se em “Fábula de um arquiteto”, acrescida por outros valores semânticos, não apenas significando iluminação, sacralidade, corrosão da matéria bruta, a vela, neste poema, também promove o trânsito tensivo do leitor entre os signos poéticos, impulsão esta que revela a linguagem poética como transitiva, apontando para as coisas do mundo, no sentido de reflexão do próprio Ser no mundo. O poder simbólico que se encontra em expressões poéticas como “vazios cheios” ou “...refechar o homem: na capela útero,” revelam a própria engenharia da palavra manifestada pelo próprio homem poeta ao deparar-se consigo fora de si, ou seja, o Ser encontra-se no Sertão sua própria existência imanente, espaço concreto da poesia.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 67-78.

JAKOBSON, R. Linguística e Poética. In: ______. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 118-162.
_____. O dominante, trad. Jorge Wanderley, Luiz Costa Lima (org.), Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 485-491.

LEITE, Sebastião Uchoa. Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto. In: Revista Tempo Brasileiro. n. 69. Abr-Jun, 1982. p. 61-95.

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979.