Olhares em números

domingo, 20 de março de 2011

Comentando uma cena: Toy Story 3



Nesta postagem, comentaremos uma sequência do filme Toy Story 3, ressaltando alguns recursos visuais e sonoros que, em conjunto, ampliam os efeitos dramáticos da história que é narrada. Trata-se da sequência em flashback em que é contado o passado de uma das personagens centrais do longa, o urso cor de rosa Lotso. Quando essa sequência nos é apresentada, já conhecemos a real natureza de Lotso. Assim como Buzz e seus amigos, confiamos na aparente receptividade e fraternidade representada pelas ações do urso, e nos revoltamos com a descoberta de suas verdadeiras intenções, lançando sobre sua imagem sentimentos de desprezo e raiva. É carregando esses sentimentos que assistimos aos fatos que compuseram seu infeliz destino e o fizeram tornar-se a personagem que é.
A narrativa em flashback é feita em off por um dos brinquedos resgatados da creche Sunnyside, o palhaço Chuckles, cuja tristeza e desilusão possuem um contraste amargo com a aparência risível de suas roupas e maquiagens coloridas. Esse detalhe, em consonância com a trilha marcadamente melancólica, antecipa o caráter trágico das cenas que se seguirão, em que presenciaremos a degradação física e moral de Lotso.
A transição para o passado é marcada pelos, sempre recorrentes, tons sépias e pela moldura sombreada que levemente arredonda o enquadramento, diferenciando-o dos outros quadros do filme, que ocorrem no presente da narrativa. Percebemos que, ao adentrar este passado, encontramos as personagens jovens e alegres, começando por Chuckles, cujo cabelo e boca conotam vivacidade e alegria. É Natal, a câmera desloca-se do palhaço em um travelling para frente, e se detém em Lotso, que acabara de ser retirado de uma caixa de presente. Ele é rapidamente envolvido pelos braços de uma criança, sua dona, Daisy. Esta cena marca o nascimento feliz de Lotso, e percebam como sua imagem toma todo o quadro, colocando-o como centro do mundo que acaba de se descortinar. Algo que antecipa seu caráter egocêntrico. O destaque dado à personagem Lotso é intensificado pela cor vibrante de sua pelúcia. Nota-se, nas rápidas cenas que se seguem, o permanente contato físico mantido pela criança e o brinquedo, sempre envoltos por um cenário bucólico e aconchegante, enternecido pelo sol ao se pôr no horizonte. Aspecto esse que novamente antecipa a caída da noite e a escuridão ameaçadora.
Em um plano médio, temos os pais de Daisy a levando para o carro. Na cena anterior podia-se notar que eles estavam mais próximos do horizonte, mesclando-se ao sol, cuja partida é marcada como ausência do conforto luminoso do dia. No carro, Dayse isola-se por completo de seus brinquedos, e em um plano detalhe, como último elemento que a afasta definitivamente, ela é presa por um cinto de segurança. No plano seguinte, após o carro onde Daisy está desaparecer no horizonte, Lotso e outros dois brinquedos, Bebezão e Chuckles, assumem novamente o centro do quadro, desamparados, envoltos pela relva que antes lhes fora espaço para brincadeiras com Daisy, e o triste passar do tempo, marcado pelo movimento das nuvens tempestuosas.
A cena seguinte se constrói a partir de um plano detalhe, onde Lotso segura uma última lembrança deixada por Daisy, um coração que reflete sua identidade, seu motivo de existência como brinquedo: pertencer a uma criança e fazê-la feliz. E, assim, parte em direção à casa de sua criança. É interessante destacar que Lotso sai do quadro pelo lado direito da tela (tomando a posição do espectador como referência), detalhe que evidência uma busca moralmente correta e não conflitante com suas origens e lembranças, Lotso ainda possui esperança, o sol ainda não se pôs totalmente. Percebemos o desamparo daqueles brinquedos, deslocando-se sobre um vasto pasto, enquadrados em uma panorâmica, cujo ângulo levemente inclinado para baixo (plongée), ressalta seu isolamento e sua inferioridade.
Na cena seguinte, Lotso surge à esquerda do quadro, em lado oposto e inferior à casa de Daisy, que fica na linha do horizonte e esconde o sol. O espaço pedregoso e a terra seca ressaltam o caminho árduo percorrido pelo urso. Auxiliado pelos amigos brinquedos, Lotso busca o último resquício daquela luz reconfortante da infância, onde permanece Daisy a brincar com seus brinquedos. E então, dá-se o choque que irá modificar toda a personalidade de Lotso. Transferindo a lente objetiva para dentro do quarto da criança, o plano é composto de tal forma que, ao isolar a personagem Lotso fora do espaço confortável e terno de seu passado, o faz deparar-se com a visão de seu duplo, tomando seu lugar. O duplo, segundo Otto Rank, psicanalista e estudioso freudiano desse tema, revela a angustiante experiência de deparar-se com o outro (alterego), e vê-lo como anunciador da morte da integridade do eu, ou seja, o que Lotso vê é parte de si mesmo que lhe é negada, que lhe é retirada, sofrendo profundamente com tal rejeição. A perda de sua própria identidade é simbolizada, posteriormente, pela quebra do coração de plástico.
O sofrimento interior e a reconstrução da personalidade traumatizada de Lotso são brilhantemente projetados na composição dos planos que se seguem. Por meio de uma montagem simbólica e metafórica, o espaço externo passa a ser uma extensão da psique de Lotso. Ao sofrer a dor da rejeição, Lotso chora lágrimas de chuva que escorrem pela janela (sim, a Pixar consegue representar o choro de um brinquedo concretamente). Nota-se, na cena seguinte, que Lotso afasta-se de seu passado, dando as costas a ele, e a câmera, neste momento, o enquadra em um ângulo levemente inclinado para cima (contra-plongée). Lotso, tomando todo o quadro, é representado em posição de superioridade e, a partir daquele momento, passa a fazer uso autoritário e impiedoso de sua posição central de liderança.
Lotso passa a ser sempre motivado pelo rancor e o ódio que carrega dentro de si e que se estampa na pelúcia não mais cintilante, mas suja e rude, resultado de todas as desilusões acometidas pelo passado. Tem-se, nas cenas que se seguem, o processo de construção da personalidade má de Lotso, representada em várias de suas atitudes de opressão e de raiva. Vemos o urso retirar-se do quadro central pelo lado esquerdo, contrastando com a cena anterior onde se voltava para a direita mantendo viva uma última esperança. O lado esquerdo marca também sua decaída, sua corrupção, pois, em mais uma das várias citações ou referências à saga Guerra nas Estrelas contidas no filme, Lotso volta-se para o lado negro da noite tempestuosa (reflexo do seu íntimo em conflito). Nota-se, na cena seguinte, quando Chuckles tenta persuadi-lo a voltar, como sua imagem cresce no quadro, e em um jogo de campo e contra-campo, Lotso aparece novamente enquadrado em contra-plongée e Jockles acossado, inferiorizado, envolto pela sombra enorme do urso. O outro brinquedo, Bebezão, também é oprimido, impedido de retornar ao lar da criança.
Lotso e seus subordinados, não mais amigos, aprofundam-se na noite fria e chuvosa. E após serem lançados bruscamente sobre poças de água por um carro do Pizza Planet (em uma pequena participação), chegam à creche Sunnyside. Lugar que nos é apresentado pela segunda vez, mas que agora se mostra envolta pela atmosfera de “ruína e desespero” na qual Lotso está envolto. Sunnyside encontra-se submersa pela escuridão, e seu letreiro é apenas iluminado por estrondosos relâmpagos, projetando no espaço físico a angústia emocional de Lotso, e tornando tal espaço um lugar inóspito e aterrador. É interessante observar o contraste construído nesse espaço, a partir dos recursos visuais e sonoros utilizados na cena: Sunnyside, que em uma tradução livre significa lado ensolarado, apresenta-se como lugar sombrio e misterioso, guardando uma relação tensa e ilusória entre sua aparência amena e agradável (passado de Lotso) e sua essência corrupta e opressora, tornando-se espaço espelho da trajetória da personagem Lotso e onde este adentra, encontrando sua nova identidade.
Concluímos nosso breve comentário aqui. Após esta rápida leitura dos efeitos de sentido produzidos pelos recursos da linguagem cinematográfica empregados nessa sequência, podemos perceber com mais agudez o que faz da Pixar um dos estúdios mais engenhosos e criativos do cinema atual. Brilhantes!