Olhares em números

domingo, 5 de junho de 2011

"Ovo de galinha" de João Cabral de Melo Neto

Ser e Sertão na poesia de João Cabral de Melo Neto: “Ovo de galinha” e o carpinteiro da palavra


escrito por Giuliarde de Abreu Narvaes



* o texto que se apresenta é fragmento de um artigo, que será publicado na íntegra no final deste ano.  


link para a leitura do poema na íntegra: http://www.releituras.com/joaocabral_oovo.asp

É de natureza introdutória pensar a forma ou a expressão poética de João Cabral de Melo Neto como um terreno seco, árido, cuja luz intensa do sol sertanejo é faca cortante, que destitui o domínio do Eu sobre o substrato poético e que rompe a fluidez de uma cadência musical como de um verso romântico ou simbolista. O conteúdo da poesia cabralina também é divergente a certa tendência poética da geração de 45, cuja configuração, segundo Haroldo de Campos, no ensaio “O geômetra engajado”, é de “uma poesia feita de sobre-realidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim dela é comunicar dados sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte mais leve e abstrata dos dicionários.” (CAMPOS, 1976). João Cabral restitui na linguagem poética do verso o peso de uma realidade impregnada de matéria bruta, exterior ao Ser, mas não alheia a ele. Ao construir um sertão poético despojado de subjetivismos, de razões transcendentais, de um espiritualismo inefável, João Cabral faz da linguagem poética um espelho de si mesma, refletindo no produto formal estático do poema sua própria natureza dinâmica de composição, revelando-a como um meio de apropriação da realidade imanente, a fim de apresentá-la em seu estado mais concreto e espesso (cf. LEITE, 1982), destituída de qualquer idealização ou estetização.
A linguagem poética questionando a si mesmo corresponde ao que Roman Jakobson (1975) caracterizou, no ensaio “Linguística e Poética”, como função metalingüística da linguagem. Em João Cabral, tal função é questionadora do processo que faz da linguagem utilizada pelo poeta, uma linguagem poética. Segundo Jakobson, “A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função dominante, determinante” (JAKOBSON, 1975), que promove o caráter palpável dos signos, aprofundando a dicotomia existente entre o signo e o objeto. Na função poética, ocorre a projeção do “princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.” (Ibidem), ou seja, a seleção de palavras e de seus elementos plásticos em nível sonoro e semântico é recurso constitutivo da sequência sintática combinada e encadeada por tais elementos. Para Jakobson, qualquer sequência fonológica ou semântica tende a construir uma equação, “a similaridade superposta à contigüidade comunica à poesia sua radical essência simbólica, multíplice, polissêmica (...)” (Ibidem). A poeticidade de um texto literário é avaliada pela dominância de tal função, em que irá prevalecer a reiteração regular de unidades equivalentes num fluxo verbal. No ensaio “O Dominante”, Jakobson (1983) esclarece que “o elemento que torna específica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura toda e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inescapável, dominando todos os elementos e exercendo influência direta sobre cada um deles.” (JAKOBSON, 1983).
Na poesia de João Cabral o predomínio da função poética leva a uma potencialização das relações metalingüísticas construídas pelo poeta. A fim de tornarmos concretas tais relações abstratas do fazer poético, seguiremos com a análise de um poema cabralino: “Ovo de galinha”, contido no livro Serial (1961).
Segundo Haroldo de Campos, o livro Serial é marcado pela composição em séries padronizadas (padronização do módulo compositivo, mesmo tema e mesmo número de quadras em todos os poemas), que não é concebida pelo autor como um produto industrial, mas um produto artesanal, “no sentido de objetos feitos a mão por um artesão, que nunca os faz todos iguais, mas os labora e elabora, tirando variantes minuciosas e sutis sob a aparente similitude de fatura.” (CAMPOS, 1976).
No poema “Ovo de galinha”, como o próprio título sugere, há um processo de metaforização do objeto da realidade natural, singularizando-o em signo poético e, a partir de seu aspecto desreferencializado, instaura-se uma crítica tanto à própria percepção de tal elemento na realidade fora do texto, quanto à sua função metapoética reveladora do estado dos signos dentro do texto. Para Sebastião Uchoa Leite, no ensaio “Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto”, a poética crítica cabralina estabelece a semantização das imagens pelo uso paradigmático da metáfora (cf. LEITE, 1982). No rigoroso horizonte árido dos versos, a abundância fértil dos significados poéticos nascem da leitura verticalizada, as imagens surgem a partir da decifração do código estabelecido. Segundo Leite, “a uma decifração do novo código, corresponderá uma re-recodificação do processo poético.” (LEITE, 1982)
Logo na primeira quadra do poema em questão, instaura-se uma relação metapoética entre o olhar e a estrutura maciça dos versos por meio da leitura metafórica e simbólica do elemento ovo:

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
Maciçamente ovo, num todo.

A compactação e a integridade da matéria verbal são mimetizadas pelas estruturas nominais e sonoras que se emolduram no final dos versos segundo, terceiro e quarto (um ovo; unitária e num todo; estruturas iniciadas por nasalização e acentuadas na penúltima sílaba). A forma em quadra da estrofe mantém concreto esse valor temático. O olho, assim como a mão aparecerá duas estrofes a frente, é órgão de sentido, responsável pela percepção do Ser no mundo. O olhar aparece neste poema como gesto metonímico de um caminhar entre as palavras, sob a aridez da folha branca, coberta de cascalhos verbais cristalizados, o olho percorre um terreno áspero, difícil, e esbarra nos imprevistos rugosos das construções imagéticas.

Sem possuir um dentro e um fora,
Tal como as pedras, sem miolo:
e só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

Adensando ainda mais as relações metalingüísticas entre os elementos temáticos e suas disposições formais como signos poéticos, João Cabral estabelece uma relação reveladora entre forma e conteúdo em sua poesia: aos olhos, o ovo, assim como o poema, estrutura metaforizada nesta relação, aparece apenas em sua forma firme, rígida, e estática, revestindo e dando forma a algo que é desconhecido pelo olhar. Tal relação entre forma e conteúdo é essencialmente intrincada no trato poético: o conteúdo motiva a forma, assim como a forma potencializa o conteúdo, e o inverso também é verdadeiro. Portanto, não há separação completa entre o fora, casca branca da página, e o dentro, substância imagética dos versos. É verificável que as palavras dispostas no verso delimitam suas próprias fronteiras: é miolo a substância significativa do verso, mas não menos significativo é o contorno, visto que a função poética determina tais projeções imagéticas nas relações metafóricas, tanto no plano da expressão quanto do conteúdo.

Que nele há algo suspeitoso

Com este verso se encerra a terceira quadra do poema, suscitando uma fundamental indagação metalingüística acerca da natureza estranha ou incomum do verso poético. O efeito de singularização atribuído a todo signo que passa pelo processo de equivalência dos eixos de seleção e ordenação leva a uma redescoberta do signo verbal enquanto tal, destituído de referencialidades e realidades por vezes ideais e abstratas.

Que seu peso não é o das pedras,
Inanimado, frio, goro;
Que o seu é um peso morno, túmido,
Um peso que é vivo e não morto.

Após a leitura dos versos acima, um retorno ao título e a outras reiterações da palavra ovo mostra-se interessante para uma nítida percepção das relações de equivalência entre os eixos de semelhança e contigüidade: nota-se que no signo poético ovo há uma compactação de todo o desenvolvimento temático do poema. A forma unitária e maciça que reveste o ovo se assemelha a perfeita forma do círculo, figura geométrica predileta dos parnasianos. Esses poetas acreditavam que para atingir o preciosismo formal do gesto sem defeitos ou sem imperfeições seria necessário um intenso trabalho de ourivesaria estética. Tal concepção é reapresentada nos versos de João Cabral adquirindo outros contornos: “o ovo revela o acabamento / a toda mão que o acaricia,” (v. 17-18); “E que se encontra também noutras / que entretanto mão não fabrica:” (v. 21-22). A “pura forma concluída” não é produto de mãos humanas, que apenas podem tocá-la. Na poética cabralina a percepção de realidade se dá, não pela poetização dos elementos naturais, mas pela revelação da carga semântica dos elementos que compõe a realidade exterior ao Ser, sendo esta naturalmente construtora e modeladora dos potenciais signos poéticos do mundo. O ovo guarda em si mesmo uma carga simbólica revelada pelo trato poético formal do próprio signo: a consoante v está emoldurada pela vogal o, que se apresenta em seu hermetismo vazio de forma perfeita, envolvendo um elemento fértil de carga semântica. O v é consoante lábio-dental que necessita se ligar a outros elementos sonoros a fim de gerar sentidos. É produto em gestação, é miolo significante à espera das possíveis interações semântico-estruturais que possam ocorrer no espaço discursivo dos signos verbais. Essas potenciais interações que o próprio signo natural engendra são reveladas na composição ordenada dos signos poéticos: João Cabral revela o que se oculta partindo da própria percepção automatizada do Ser. A relação de contigüidade possível entre os elementos ovo, vida e vivo, desvela uma singular relação semântica entre o signo ovo e o objeto natural da realidade física: ambos guardam dentro de si o elemento que gera a vida.
A partir da seleção paradigmática dos signos, estabelece-se, portanto, na composição sintagmática do verso, uma reveladora objetividade do signo natural. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi (1980) salienta a característica da poesia cabralina de voltar o olhar aos puros signos naturais. Segundo o autor, a poesia de João Cabral de Melo Neto “tem dado um exemplo fortemente persuasivo de ‘volta às próprias coisas’ como estrada real para apreender e transformar uma realidade que, opaca e renitente, desafia sem cessar a nossa inteligência.” (BOSI, 1980). A metáfora poética estabelecida em “Ovo de galinha” transporta, como diria Sebastião Uchôa Leite, em relação a outro poema de João Cabral, a carga semântica do organismo vivo, estabelecendo uma vertical penetração simbólica na realidade.
No entanto, em João Cabral, tal construção simbólica revela-se inicial, ponto de partida para pensar não apenas a atividade criadora do poeta em si mesmo, mas na sua intrincada relação com a “apreensão sensível dos dados da realidade concreta” (LEITE, 1982). Segundo Uchôa Leite, leitor algum pode deixar que se enfraqueça a capacidade de captar e dominar plenamente tal realidade.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

O poema, revestido pela forma franca e branca da folha de papel, engendrado pela arquitetura rigorosa e áspera do trato formal do verso, carrega em si, num interior repleto de fertilidades semânticas e simbólicas, o gesto aguçado e engenhoso do poetar, do perceber a paisagem e os objetos da realidade e reapresentá-los como singular, autêntica e inspiradora, matéria poética pulsante, viva e instigante. Matéria capaz de transportar o leitor/errante para um aparente terreno desértico e estéril dos signos verbais, que, no entanto, oculta férteis oasis semânticos, fluídos poéticos de alumbramentos.
Neste breve percurso pela poética de João Cabral de Melo Neto, pretende-se compreender que a pedra e o arquiteto, metáforas utilizadas por Cabral em relação ao signo poético e ao trabalho do poeta, respectivamente, são pontos de partida para um percurso exaustivo pela espessa e áspera composição poética cabralina. João Cabral não é arquiteto, muito menos sua poesia é pedra. O ponto tensivo está menos no rigor formal da composição versus a fertilidade expansiva da valoração semântica dos signos, e mais na ação poética criadora que devolve ao Ser humano leitor, a reveladora convivência com as coisas vistas por dentro. Assim como a arquitetura constrói portas de abrir, João Cabral constrói “... portas abertas, em portas; / casas exclusivamente portas e tecto.” (MELO NETO, 1979). A palavra tecto tem origem grega, téktón, e designa carpinteiro, aquele que lida com a matéria viva, fértil, pulsante. Observemos a última estrofe de “Fábula de um arquiteto”, contido no livro Educação pela pedra (1962-1965):

Até que, tantos livres o amedrontamento,
renegou dar a viver no claro e aberto.
onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

O trabalho poético aparece como aparente trato de ocultamento, desfazendo a clareza e a facilidade de entrada no substrato simbólico da poesia, mas, o que se revela na metapoesia cabralina é a necessidade de transição, de deslocamento para um estado imanente de existência. O termo amurando, originado do verbo amurar, que significa “prender, tesar com voltas as amuras (de uma vela) para que a vela receba bem o vento”, estabelece perfeitamente tal relação de ampliação semântica dos termos. As reiterações intensificam-se na poesia de Cabral, e potencializam o valor semântico dos objetos: a vela, signo poético final no poema “Ovo de galinha”, reitera-se em “Fábula de um arquiteto”, acrescida por outros valores semânticos, não apenas significando iluminação, sacralidade, corrosão da matéria bruta, a vela, neste poema, também promove o trânsito tensivo do leitor entre os signos poéticos, impulsão esta que revela a linguagem poética como transitiva, apontando para as coisas do mundo, no sentido de reflexão do próprio Ser no mundo. O poder simbólico que se encontra em expressões poéticas como “vazios cheios” ou “...refechar o homem: na capela útero,” revelam a própria engenharia da palavra manifestada pelo próprio homem poeta ao deparar-se consigo fora de si, ou seja, o Ser encontra-se no Sertão sua própria existência imanente, espaço concreto da poesia.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 67-78.

JAKOBSON, R. Linguística e Poética. In: ______. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 118-162.
_____. O dominante, trad. Jorge Wanderley, Luiz Costa Lima (org.), Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 485-491.

LEITE, Sebastião Uchoa. Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto. In: Revista Tempo Brasileiro. n. 69. Abr-Jun, 1982. p. 61-95.

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979.

2 comentários:

  1. Tem muito migué, fala pouca coisa interessante. Acha q só pq tem palavras bonitas o texto está bom mas e a explicação sobre a metáfora do poema?

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  2. Análise empolada, muito hermético e sem consistência sólida, embora faça sentido algumas análises. devia ser mais objetivo.

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