Olhares em números

domingo, 5 de junho de 2011

A poesia com instante de vida: um prévio comentário sobre o que esperar de "A Árvore da Vida", de Terrence Malick



A Árvore da Vida, novo e aclamado longa-metragem de Terrence Malick (Cinzas do Paraíso e Terra de Ninguém), ainda inédito por aqui, se apresentará nos cinemas uma produção singular porque poética ou poética porque singular? Evidentemente esses dois conceitos, aplicados às manifestações artísticas, adquirem implicações muito maiores do que se pretende esta pequena postagem, mas, neste caso, mostram-se relevantes para um prévio comentário sobre o filme, em que se delineiam impressões imprecisas, porém irresistíveis, sobre qual é e como se mostrará a estória concebida por Malick, seus co-roteristas e parte do elenco.
Da estória narrada sabemos muito pouco. Gira em torno de um núcleo familiar dos anos 50, no subúrbio americano. O pai (Brad Pitt) traduz-se em uma figura aparentemente rígida e rigorosamente lúcida; a mãe, mulher meiga e sensível, não deixa de atribuir, a cada lição ou reprimenda aos filhos, uma maternal carga de afeto; e os irmãos, ainda crianças, trazem dúvidas e indignações dissimuladas na pureza e inocência de uma risada ou de uma lágrima. A morte, como perda e desespero, irrompe na trama, conduzindo ao questionamento e a angústia da vida adulta e a busca de um sentido perdido, ou jamais, verdadeiramente possuído. Jack, o irmão mais velho, como um filho pródigo, volta-se para um passado, somente presente na memória, à procura de um futuro sentido para vida.
A singularidade do filme de Malick já se insinua nas poucas imagens que ainda temos dele. Seus cartazes são pequenas obras-primas fotográficas:


O trailer é grandioso: processo estético que nos apresenta uma realidade que não é outra senão a nossa, no entanto, singularmente revelada em seus detalhes, vivenciada em intensas sensações, pressentida em um fluxo contínuo de imagens estranhamente familiares e simplesmente misteriosas, capazes, em sua composição poética, de organizar o caos do mundo e descegar os sentidos humanos. Como toda obra de arte, particularmente a cinematográfica, é, e assim deve ser.



No início, a escuridão. Faíscas de luz delineiam uma etérea massa vaporosa. Do vermelho escarlate de uma nebulosa ou de uma nuvem cósmica em brasa viva, irrompe a luz. Algo toca a Terra. O mar. Árvores se alongam em direção a um céu luminoso. “Existem duas maneiras de se viver: a maneira da natureza e a maneira da graça.”. A Árvore da Vida propõe correspondências misteriosas entre a grandiosidade do cosmos e a efêmera existência humana, que, observada em comunhão com o natural, sabe-se transitória, como um sopro ou uma faísca, aparentemente finita e angustiantemente insondável. Quando nos permitimos despertar o olhar sonolento que mantemos durante toda a vida, conformado à simples aparência do mundo e aos espelhos onde emolduramos nossas crenças e idealismos, a atenção se volta para os detalhes, estes, pequenos lampejos, reveladores de uma totalidade que se apresenta em cada parte fugidia da vida. E então, quando a retina se expande e o tempo se dilata, o espaço se contrai pela atenção (ação de fixar o espírito em algo; concentração da atividade mental sobre um objeto determinado). E da movimentação cosmogônica das primeiras imagens, temos a expansão do olhar. A atenção de um pai que envolve o pequenino pé de seu filho entre as mãos, ao fundo uma fina cortina sobre a luz, em uma atitude de encanto e curiosidade, protege a fragilidade humana ainda intocada pelas asperezas do tempo e do mundo. Um olhar infantil toma o primeiro plano. O bebê traz a importante lição da singularidade. Sua percepção do mundo é permeada pela atenção e pelo interesse, pois tudo se mostra estranho e singular. Olhar as imagens que se apresentam como se acabassem de serem criadas, e só no momento do olhar sua existência torna-se plena. “Nós temos que escolher qual delas seguir”. O estado de graça é instante de alumbramento, quando fenômenos naturais e corpóreos atravessam a superfície espessa das vidraças da alma, projetando, na disformidade aparente de uma ilusão ótica, uma superfície palpável que nos permite enxergar o mistério. “Você terá crescido antes dessa árvore ficar alta”. O crescimento dá-se pela irrefreável necessidade de conformação, alienação e automatização da vivência do mundo. Um caminhar de sapatos e passos imitados sobre a fruição orgânica da grama. Nomear as coisas do mundo e esquecer a impressão interessantemente desconhecida que elas causam. Observar a vida refletir-se em cada semente germinada e constatar a efemeridade da existência humana (neste plano, mãe e bebê, uma muda de árvore sendo plantada, uma criança que observa tudo, e o pai, após fincar a pá na terra, a regar o solo remexido, estabelecem uma comunhão poeticamente cotidiana entre a natureza e o ser humano). Pai e mãe, ao observarem seus frutos, em uma posição superior, confundem-se com o sol e com as árvores, regentes da espantosa sinfonia do passar dos tempos (não à toa, o nome do diretor aparecer logo em seguida). E assim, um carrossel de imagens irrompe na tela, ritmado pela impactante trilha sonora. A harmonia do mundo se figura nos fugidios sinais da graça, quando ser humano e natureza permitem se tocar mutuamente (o plano da mãe com a mão estendida servindo de repouso à borboleta é revelador). Mas algo de obscuro e sombrio, pois inexplicável e incontrolável, constitui o Ser humano. Dentro de sua própria casa, ele não é senhor, não consegue iluminar todos os cantos, pois em alguns deles ele próprio se constrói através das sombras. “É preciso uma vontade feroz se quiser ser o primeiro neste mundo”. A selvageria, a contestação, os impulsos que trazem dor e medo são raízes profundas que permitem o crescimento. Um crescimento rumo à morte, onde a dúvida e a inconstância não deixa que se enxergue o fim, e a completitude que se prefigura no tempo. “Eu sempre quis que você fosse forte. Um homem completo.” (neste ponto, instaura-se no trailer um movimento que será repetitivo, o caminhar para dentro do cenário, rumo ao ponto de fuga, no centro do quadro construído pela câmera objetiva). Pai e filho se confrontam, se opõe em lados opostos do quadro fílmico. Entreolham-se. E como num espelho que duplica o ser em uma imagem levemente distorcida, pai e filho projetam-se um no outro, como imagens oblíquas de si mesmo. O pai exige do filho algo que lhe escapa, o filho busca no pai algo que ele talvez não possa oferecer plenamente. O conflito se estabelece e, novamente, o tempo se expande. “Pai... mãe... vocês sempre estiveram do meu lado (em conflito, dentro de mim)” “Vocês sempre estarão” (o recurso sonoro utilizado neste trecho é impactante, não haveria outra forma de intensificar o valor semântico e a carga emocional dessas frases, se as mesmas não fosse sussurradas). A transição do quadro é belíssima. Uma justaposição de planos que revela a atemporalidade de uma personalidade marcadamente sensível e angustiada. Atores se complementam em suas expressões: o rapaz que vive Jack na adolescência e Sean Penn na vida adulta. A natureza exuberantemente verde é substituída pela profundidade geométrica e monocromática de um espaço urbano. E novas metáforas se constroem plano sobre plano, integrando, em gestos intimistas e abundantes, o ser humano e a natureza no escoar dos tempos. Novamente, a grandiosidade do derretimento de uma geleira (ou vazão de uma cachoeira?) se reflete no escoar da água em uma torneira. Um olhar para as lembranças, à memória de um pai, que vê o filho à soleira da sua porta. Que o toca envolto por um fino tecido opaco do tempo e do espaço que os separam. Vislumbra-se o vertiginoso desdobrar-se da memória, que se faz na desconstrução dos alicerces racionais da perspectiva, deixando as sombras se alongarem sobre uma realidade antiga. “Algum dia você vai cair e chorar. E então vai entender tudo.” “Todas as coisas”. E, em um último alento, depois da queda e da dor, os olhos se voltam para a luz quente e confortável da infância. Do abajur ao pé da janela. Do caminhar com o pai em direção ao sol. Do rosto terno e afetuoso da mãe, banhado em luz. E o futuro... o começo do fim de tudo... a distensão dos espaços e a compressão do tempo. Sucedem-se planos onde o movimento de travelling (deslocamento da câmera) para frente, além de estabelecerem um ritmo visual entre as cenas, revelam personagens em busca de um ponto de luz, que se origina do horizonte ou de uma janela, e, em seguida, se deslocando, seguindo o mesmo movimento, ruma a uma floresta e um caminhão de fumaça. A busca conduz ao desconhecido, ao nebuloso, ao impalpável. “Guie-nos até o fim dos tempos.”.
E então, ao fim... dois rápidos planos nos chamam a atenção, nos permitindo concluir, antecipadamente, o que poderemos encontrar em A Árvore da Vida: a arte cinematográfica possibilita o simbólico, permite reorganizar a realidade, e de tal forma amplificá-la, que não se vê somente um menino atravessando uma porta, mas uma ação de atravessar uma porta que liquefaz a percepção do espaço, que mistura o movimento de nado ao de flutuar, tudo enquadrado por uma câmera que desautomatiza a perspectiva, ampliando as dimensões de afeto e de efeito entre o real e o imaginário apresentados no plano. Trata-se de um movimento de passagem, de transcendência, de morte e vida, de crescimento e perda... a infância que fica, suspensa na memória de um passado reconfortante. O fim é luz. Intenso clarão, obtuso, espiralado: como um próximo plano nos mostra. Uma espiral em vitrais de mosaicos que, quanto mais próximos do centro onde se encontra a luz, mas difusos e opacos apresentam seus elementos constituintes, tornando-se cada vez mais uniformes, como se a materialidade do corpóreo se revelasse transpassada pela espiritualidade transcendente da alma.
“A não ser que você ame sua vida passará como um flash.”. Indo além dos temas religiosos suscitados pelos elementos de espiritualidade cristã presentes no filme, A Árvore da Vida propõe-se a algo maior que a simples busca pelo sentido da vida. Permite, em última instância, que se toque o mistério da vida, expandindo-a, singularizando sua vivência. E assim se revelará o valor poético do filme de Terrence Malick, uma espiral dialética que permite vivenciar com extrema lucidez os mistérios do mundo e do ser humano, tornando-os palpáveis aos sentidos, sem jamais desfazer seu silêncio e sua plenitude com explicações teológicas ou com razões abstratas, que tanto necessitam nomear as coisas do mundo.

"Ovo de galinha" de João Cabral de Melo Neto

Ser e Sertão na poesia de João Cabral de Melo Neto: “Ovo de galinha” e o carpinteiro da palavra


escrito por Giuliarde de Abreu Narvaes



* o texto que se apresenta é fragmento de um artigo, que será publicado na íntegra no final deste ano.  


link para a leitura do poema na íntegra: http://www.releituras.com/joaocabral_oovo.asp

É de natureza introdutória pensar a forma ou a expressão poética de João Cabral de Melo Neto como um terreno seco, árido, cuja luz intensa do sol sertanejo é faca cortante, que destitui o domínio do Eu sobre o substrato poético e que rompe a fluidez de uma cadência musical como de um verso romântico ou simbolista. O conteúdo da poesia cabralina também é divergente a certa tendência poética da geração de 45, cuja configuração, segundo Haroldo de Campos, no ensaio “O geômetra engajado”, é de “uma poesia feita de sobre-realidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim dela é comunicar dados sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte mais leve e abstrata dos dicionários.” (CAMPOS, 1976). João Cabral restitui na linguagem poética do verso o peso de uma realidade impregnada de matéria bruta, exterior ao Ser, mas não alheia a ele. Ao construir um sertão poético despojado de subjetivismos, de razões transcendentais, de um espiritualismo inefável, João Cabral faz da linguagem poética um espelho de si mesma, refletindo no produto formal estático do poema sua própria natureza dinâmica de composição, revelando-a como um meio de apropriação da realidade imanente, a fim de apresentá-la em seu estado mais concreto e espesso (cf. LEITE, 1982), destituída de qualquer idealização ou estetização.
A linguagem poética questionando a si mesmo corresponde ao que Roman Jakobson (1975) caracterizou, no ensaio “Linguística e Poética”, como função metalingüística da linguagem. Em João Cabral, tal função é questionadora do processo que faz da linguagem utilizada pelo poeta, uma linguagem poética. Segundo Jakobson, “A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão somente a função dominante, determinante” (JAKOBSON, 1975), que promove o caráter palpável dos signos, aprofundando a dicotomia existente entre o signo e o objeto. Na função poética, ocorre a projeção do “princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação.” (Ibidem), ou seja, a seleção de palavras e de seus elementos plásticos em nível sonoro e semântico é recurso constitutivo da sequência sintática combinada e encadeada por tais elementos. Para Jakobson, qualquer sequência fonológica ou semântica tende a construir uma equação, “a similaridade superposta à contigüidade comunica à poesia sua radical essência simbólica, multíplice, polissêmica (...)” (Ibidem). A poeticidade de um texto literário é avaliada pela dominância de tal função, em que irá prevalecer a reiteração regular de unidades equivalentes num fluxo verbal. No ensaio “O Dominante”, Jakobson (1983) esclarece que “o elemento que torna específica uma determinada variedade de linguagem domina a estrutura toda e assim sendo atua como seu constituinte obrigatório e inescapável, dominando todos os elementos e exercendo influência direta sobre cada um deles.” (JAKOBSON, 1983).
Na poesia de João Cabral o predomínio da função poética leva a uma potencialização das relações metalingüísticas construídas pelo poeta. A fim de tornarmos concretas tais relações abstratas do fazer poético, seguiremos com a análise de um poema cabralino: “Ovo de galinha”, contido no livro Serial (1961).
Segundo Haroldo de Campos, o livro Serial é marcado pela composição em séries padronizadas (padronização do módulo compositivo, mesmo tema e mesmo número de quadras em todos os poemas), que não é concebida pelo autor como um produto industrial, mas um produto artesanal, “no sentido de objetos feitos a mão por um artesão, que nunca os faz todos iguais, mas os labora e elabora, tirando variantes minuciosas e sutis sob a aparente similitude de fatura.” (CAMPOS, 1976).
No poema “Ovo de galinha”, como o próprio título sugere, há um processo de metaforização do objeto da realidade natural, singularizando-o em signo poético e, a partir de seu aspecto desreferencializado, instaura-se uma crítica tanto à própria percepção de tal elemento na realidade fora do texto, quanto à sua função metapoética reveladora do estado dos signos dentro do texto. Para Sebastião Uchoa Leite, no ensaio “Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto”, a poética crítica cabralina estabelece a semantização das imagens pelo uso paradigmático da metáfora (cf. LEITE, 1982). No rigoroso horizonte árido dos versos, a abundância fértil dos significados poéticos nascem da leitura verticalizada, as imagens surgem a partir da decifração do código estabelecido. Segundo Leite, “a uma decifração do novo código, corresponderá uma re-recodificação do processo poético.” (LEITE, 1982)
Logo na primeira quadra do poema em questão, instaura-se uma relação metapoética entre o olhar e a estrutura maciça dos versos por meio da leitura metafórica e simbólica do elemento ovo:

Ao olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
Maciçamente ovo, num todo.

A compactação e a integridade da matéria verbal são mimetizadas pelas estruturas nominais e sonoras que se emolduram no final dos versos segundo, terceiro e quarto (um ovo; unitária e num todo; estruturas iniciadas por nasalização e acentuadas na penúltima sílaba). A forma em quadra da estrofe mantém concreto esse valor temático. O olho, assim como a mão aparecerá duas estrofes a frente, é órgão de sentido, responsável pela percepção do Ser no mundo. O olhar aparece neste poema como gesto metonímico de um caminhar entre as palavras, sob a aridez da folha branca, coberta de cascalhos verbais cristalizados, o olho percorre um terreno áspero, difícil, e esbarra nos imprevistos rugosos das construções imagéticas.

Sem possuir um dentro e um fora,
Tal como as pedras, sem miolo:
e só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.

Adensando ainda mais as relações metalingüísticas entre os elementos temáticos e suas disposições formais como signos poéticos, João Cabral estabelece uma relação reveladora entre forma e conteúdo em sua poesia: aos olhos, o ovo, assim como o poema, estrutura metaforizada nesta relação, aparece apenas em sua forma firme, rígida, e estática, revestindo e dando forma a algo que é desconhecido pelo olhar. Tal relação entre forma e conteúdo é essencialmente intrincada no trato poético: o conteúdo motiva a forma, assim como a forma potencializa o conteúdo, e o inverso também é verdadeiro. Portanto, não há separação completa entre o fora, casca branca da página, e o dentro, substância imagética dos versos. É verificável que as palavras dispostas no verso delimitam suas próprias fronteiras: é miolo a substância significativa do verso, mas não menos significativo é o contorno, visto que a função poética determina tais projeções imagéticas nas relações metafóricas, tanto no plano da expressão quanto do conteúdo.

Que nele há algo suspeitoso

Com este verso se encerra a terceira quadra do poema, suscitando uma fundamental indagação metalingüística acerca da natureza estranha ou incomum do verso poético. O efeito de singularização atribuído a todo signo que passa pelo processo de equivalência dos eixos de seleção e ordenação leva a uma redescoberta do signo verbal enquanto tal, destituído de referencialidades e realidades por vezes ideais e abstratas.

Que seu peso não é o das pedras,
Inanimado, frio, goro;
Que o seu é um peso morno, túmido,
Um peso que é vivo e não morto.

Após a leitura dos versos acima, um retorno ao título e a outras reiterações da palavra ovo mostra-se interessante para uma nítida percepção das relações de equivalência entre os eixos de semelhança e contigüidade: nota-se que no signo poético ovo há uma compactação de todo o desenvolvimento temático do poema. A forma unitária e maciça que reveste o ovo se assemelha a perfeita forma do círculo, figura geométrica predileta dos parnasianos. Esses poetas acreditavam que para atingir o preciosismo formal do gesto sem defeitos ou sem imperfeições seria necessário um intenso trabalho de ourivesaria estética. Tal concepção é reapresentada nos versos de João Cabral adquirindo outros contornos: “o ovo revela o acabamento / a toda mão que o acaricia,” (v. 17-18); “E que se encontra também noutras / que entretanto mão não fabrica:” (v. 21-22). A “pura forma concluída” não é produto de mãos humanas, que apenas podem tocá-la. Na poética cabralina a percepção de realidade se dá, não pela poetização dos elementos naturais, mas pela revelação da carga semântica dos elementos que compõe a realidade exterior ao Ser, sendo esta naturalmente construtora e modeladora dos potenciais signos poéticos do mundo. O ovo guarda em si mesmo uma carga simbólica revelada pelo trato poético formal do próprio signo: a consoante v está emoldurada pela vogal o, que se apresenta em seu hermetismo vazio de forma perfeita, envolvendo um elemento fértil de carga semântica. O v é consoante lábio-dental que necessita se ligar a outros elementos sonoros a fim de gerar sentidos. É produto em gestação, é miolo significante à espera das possíveis interações semântico-estruturais que possam ocorrer no espaço discursivo dos signos verbais. Essas potenciais interações que o próprio signo natural engendra são reveladas na composição ordenada dos signos poéticos: João Cabral revela o que se oculta partindo da própria percepção automatizada do Ser. A relação de contigüidade possível entre os elementos ovo, vida e vivo, desvela uma singular relação semântica entre o signo ovo e o objeto natural da realidade física: ambos guardam dentro de si o elemento que gera a vida.
A partir da seleção paradigmática dos signos, estabelece-se, portanto, na composição sintagmática do verso, uma reveladora objetividade do signo natural. Em História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi (1980) salienta a característica da poesia cabralina de voltar o olhar aos puros signos naturais. Segundo o autor, a poesia de João Cabral de Melo Neto “tem dado um exemplo fortemente persuasivo de ‘volta às próprias coisas’ como estrada real para apreender e transformar uma realidade que, opaca e renitente, desafia sem cessar a nossa inteligência.” (BOSI, 1980). A metáfora poética estabelecida em “Ovo de galinha” transporta, como diria Sebastião Uchôa Leite, em relação a outro poema de João Cabral, a carga semântica do organismo vivo, estabelecendo uma vertical penetração simbólica na realidade.
No entanto, em João Cabral, tal construção simbólica revela-se inicial, ponto de partida para pensar não apenas a atividade criadora do poeta em si mesmo, mas na sua intrincada relação com a “apreensão sensível dos dados da realidade concreta” (LEITE, 1982). Segundo Uchôa Leite, leitor algum pode deixar que se enfraqueça a capacidade de captar e dominar plenamente tal realidade.

O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o
prossegue na atitude regra:

procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.

O poema, revestido pela forma franca e branca da folha de papel, engendrado pela arquitetura rigorosa e áspera do trato formal do verso, carrega em si, num interior repleto de fertilidades semânticas e simbólicas, o gesto aguçado e engenhoso do poetar, do perceber a paisagem e os objetos da realidade e reapresentá-los como singular, autêntica e inspiradora, matéria poética pulsante, viva e instigante. Matéria capaz de transportar o leitor/errante para um aparente terreno desértico e estéril dos signos verbais, que, no entanto, oculta férteis oasis semânticos, fluídos poéticos de alumbramentos.
Neste breve percurso pela poética de João Cabral de Melo Neto, pretende-se compreender que a pedra e o arquiteto, metáforas utilizadas por Cabral em relação ao signo poético e ao trabalho do poeta, respectivamente, são pontos de partida para um percurso exaustivo pela espessa e áspera composição poética cabralina. João Cabral não é arquiteto, muito menos sua poesia é pedra. O ponto tensivo está menos no rigor formal da composição versus a fertilidade expansiva da valoração semântica dos signos, e mais na ação poética criadora que devolve ao Ser humano leitor, a reveladora convivência com as coisas vistas por dentro. Assim como a arquitetura constrói portas de abrir, João Cabral constrói “... portas abertas, em portas; / casas exclusivamente portas e tecto.” (MELO NETO, 1979). A palavra tecto tem origem grega, téktón, e designa carpinteiro, aquele que lida com a matéria viva, fértil, pulsante. Observemos a última estrofe de “Fábula de um arquiteto”, contido no livro Educação pela pedra (1962-1965):

Até que, tantos livres o amedrontamento,
renegou dar a viver no claro e aberto.
onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

O trabalho poético aparece como aparente trato de ocultamento, desfazendo a clareza e a facilidade de entrada no substrato simbólico da poesia, mas, o que se revela na metapoesia cabralina é a necessidade de transição, de deslocamento para um estado imanente de existência. O termo amurando, originado do verbo amurar, que significa “prender, tesar com voltas as amuras (de uma vela) para que a vela receba bem o vento”, estabelece perfeitamente tal relação de ampliação semântica dos termos. As reiterações intensificam-se na poesia de Cabral, e potencializam o valor semântico dos objetos: a vela, signo poético final no poema “Ovo de galinha”, reitera-se em “Fábula de um arquiteto”, acrescida por outros valores semânticos, não apenas significando iluminação, sacralidade, corrosão da matéria bruta, a vela, neste poema, também promove o trânsito tensivo do leitor entre os signos poéticos, impulsão esta que revela a linguagem poética como transitiva, apontando para as coisas do mundo, no sentido de reflexão do próprio Ser no mundo. O poder simbólico que se encontra em expressões poéticas como “vazios cheios” ou “...refechar o homem: na capela útero,” revelam a própria engenharia da palavra manifestada pelo próprio homem poeta ao deparar-se consigo fora de si, ou seja, o Ser encontra-se no Sertão sua própria existência imanente, espaço concreto da poesia.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980.

CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. In: ______. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 67-78.

JAKOBSON, R. Linguística e Poética. In: ______. Linguística e Comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975. p. 118-162.
_____. O dominante, trad. Jorge Wanderley, Luiz Costa Lima (org.), Teoria da Literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 485-491.

LEITE, Sebastião Uchoa. Máquina sem mistério: a poesia de João Cabral de Melo Neto. In: Revista Tempo Brasileiro. n. 69. Abr-Jun, 1982. p. 61-95.

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1979.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

"Sleeping Beauty" estreia no Festival de Cannes

Visitantes do blog, muito obrigado por este certo olhar. Neste post, inauguro uma nova coluna, intitulada "ressonâncias", que se prestará à publicação de alguns comentários e críticas da imprensa francesa sobre certos filmes que ainda não estrearam em circuito nacional. O intuito dessa coluna é, ao mesmo tempo, compartilhar algumas notícias sobre filmes interessantes que possam vir a estrear nas salas de cinema do Brasil, e os quais aguardamos ansiosamente, e, também, (este lado é mais pessoal) estimular meus estudos de francês, ainda em nível intermediário. 
Neste primeiro post, transcrevo uma humilde tradução de um artigo publicado no site www.rfi.fr, sobre o filme "Sleeping Beauty", da diretora estreante Julia Legth, exibido no segundo dia da 64ª edição do Festival de Cannes, que acontece de 11 a 22 de maio.
O Festival de Cannes é um dos maiores e mais conceituados festivais de cinema do mundo. Durante os dias de festival, importantes nomes do cinema mundial transitam entre as salas de exibições e as sessões de entrevistas e conferências. O que de melhor se produz no cinema atual passa pela cidade de Cannes, sendo algumas dessas produções, avaliadas por um Júri (les Jurys) de críticos, produtores, atores e diretores consagrados, premiadas com as Palmas de ouro (les Palmarès d'or).


Abaixo segue a tradução do artigo francês:

“Sleeping Beauty”, de Julia Leigh abre cruelmente a competição no Festival de Cannes

Perturbador. Não há almas sensíveis. “Sleeping Beauty” não tem nada de conto de fadas. Em seu primeiro longa-metragem, a diretora australiana Julia Leigh nos tortura pela beleza com que apresenta a perfeição violada de Lucy, interpretada pela espantosa Emily Browning. Um filme que abre em altíssimo nível a mostra competitiva do 64ª Festival de Cannes, e aumenta a exigência para os próximos 19 filmes que concorrerão à Palma de Ouro.
Lucy é uma jovem estudante, tão bela quanto se possa acreditar. Deixando transparecer uma inocência desconcertante, ela nos mergulha, em sua primeira cena, em uma aflição que nos tirará o ar até o fim da projeção.
O filme começa em um laboratório, cuja atmosfera clínica é intensificada pela luzes brancas que pontuam o cenário. Neste lugar, Lucy se presta a experimentos médicos, um tubo é colocado em sua boca, lançando ar para dentro de seu peito. Um longo plano-sequência. Depois, um outro lugar. E então, a observamos limpar as mesas de um pequeno restaurante onde trabalha. Seu patrão se oferece para acompanhá-la até sua casa em seu carro. Ela rejeita a oferta: “Não, eu vou namorar”.

Adormecimento e lembrança

A diretora Julia Leigh nos faz, rapidamente, compreender o que a menina queria dizer: no banheiro de um bar, Lucy cheira cocaína e oferece, em seguida, seu corpo aos clientes. Uma humilhação a qual se submete com certa desenvoltura. Durante o dia, ela seleciona fotografias e leva bronca de seu chefe. Ao voltar a sua “casa”, logo se faz lembrar do dever, limpar as juntas negras entre os azulejos da sala de banho. Sua única referência é seu amigo Birdman, drogado e arruinado. Sua mãe, alcoólatra e violenta. Longe de seu apartamento, Lucy oferece seu corpo por 250 dólares a hora, na casa de uma cafetina, a homens velhos e ricos. Há uma condição especial: Lucy deve primeiro cair em um sono profundo, embalada totalmente em lembranças. Ela não reconhece nenhum de seus “clientes” que tem como única restrição: não penetrá-la. Uma espiral infernal se inicia.

Com longos travellings e uma encenação terrível, Julia Leigh nos faz penetrar no universo de Lucy e nos conduz nesta história tão estranha de uma bela adormecida que é na verdade uma menina abandonada. O plano fixo mostra a cama, o lugar do crime final, que se encontra no meio da tela. No centro da cama encontra-se a bela Lucy adormecida. Juntamente com os dois enormes abajures, a cama forma uma cruz. Um caminho de crucificação onde a fortaleza do corpo não é tão transparente. No entanto, o ser humano é mais que a consciência em vigília. O corpo tem sua própria memória e a alma não esquece jamais. A bela adormecida desperta a crueldade dos outros.

Julia Leigh, um primeiro filme para uma romancista consagrada

Até aqui, somente a diretora neozelandesa Jane Campion tivera a sorte de ganhar o principal prêmio do Festival de Cannes. Fora em 1993, por O Piano. Hoje, é uma de suas protegidas que aspira à Palma de Ouro. A australiana Julia Leigh, nascida em 1970, assina seu primeiro longa-metragem com Sleeping Beauty. Seus projetos como diretora são uma continuação lógica de seu trabalho como escritora. Com seus romances The Hunter e Disquiet, ela figurava na lista dos 21 autores mais proeminentes para o século XXI do London Observer. Em Sleeping Beauty, que provocou uma aclamação polêmica na Austrália, Leigh coloca enfim seu talento literário na tela. 


confiram o texto original: http://www.rfi.fr/france/20110506-sleeping-beauty

domingo, 20 de março de 2011

Comentando uma cena: Toy Story 3



Nesta postagem, comentaremos uma sequência do filme Toy Story 3, ressaltando alguns recursos visuais e sonoros que, em conjunto, ampliam os efeitos dramáticos da história que é narrada. Trata-se da sequência em flashback em que é contado o passado de uma das personagens centrais do longa, o urso cor de rosa Lotso. Quando essa sequência nos é apresentada, já conhecemos a real natureza de Lotso. Assim como Buzz e seus amigos, confiamos na aparente receptividade e fraternidade representada pelas ações do urso, e nos revoltamos com a descoberta de suas verdadeiras intenções, lançando sobre sua imagem sentimentos de desprezo e raiva. É carregando esses sentimentos que assistimos aos fatos que compuseram seu infeliz destino e o fizeram tornar-se a personagem que é.
A narrativa em flashback é feita em off por um dos brinquedos resgatados da creche Sunnyside, o palhaço Chuckles, cuja tristeza e desilusão possuem um contraste amargo com a aparência risível de suas roupas e maquiagens coloridas. Esse detalhe, em consonância com a trilha marcadamente melancólica, antecipa o caráter trágico das cenas que se seguirão, em que presenciaremos a degradação física e moral de Lotso.
A transição para o passado é marcada pelos, sempre recorrentes, tons sépias e pela moldura sombreada que levemente arredonda o enquadramento, diferenciando-o dos outros quadros do filme, que ocorrem no presente da narrativa. Percebemos que, ao adentrar este passado, encontramos as personagens jovens e alegres, começando por Chuckles, cujo cabelo e boca conotam vivacidade e alegria. É Natal, a câmera desloca-se do palhaço em um travelling para frente, e se detém em Lotso, que acabara de ser retirado de uma caixa de presente. Ele é rapidamente envolvido pelos braços de uma criança, sua dona, Daisy. Esta cena marca o nascimento feliz de Lotso, e percebam como sua imagem toma todo o quadro, colocando-o como centro do mundo que acaba de se descortinar. Algo que antecipa seu caráter egocêntrico. O destaque dado à personagem Lotso é intensificado pela cor vibrante de sua pelúcia. Nota-se, nas rápidas cenas que se seguem, o permanente contato físico mantido pela criança e o brinquedo, sempre envoltos por um cenário bucólico e aconchegante, enternecido pelo sol ao se pôr no horizonte. Aspecto esse que novamente antecipa a caída da noite e a escuridão ameaçadora.
Em um plano médio, temos os pais de Daisy a levando para o carro. Na cena anterior podia-se notar que eles estavam mais próximos do horizonte, mesclando-se ao sol, cuja partida é marcada como ausência do conforto luminoso do dia. No carro, Dayse isola-se por completo de seus brinquedos, e em um plano detalhe, como último elemento que a afasta definitivamente, ela é presa por um cinto de segurança. No plano seguinte, após o carro onde Daisy está desaparecer no horizonte, Lotso e outros dois brinquedos, Bebezão e Chuckles, assumem novamente o centro do quadro, desamparados, envoltos pela relva que antes lhes fora espaço para brincadeiras com Daisy, e o triste passar do tempo, marcado pelo movimento das nuvens tempestuosas.
A cena seguinte se constrói a partir de um plano detalhe, onde Lotso segura uma última lembrança deixada por Daisy, um coração que reflete sua identidade, seu motivo de existência como brinquedo: pertencer a uma criança e fazê-la feliz. E, assim, parte em direção à casa de sua criança. É interessante destacar que Lotso sai do quadro pelo lado direito da tela (tomando a posição do espectador como referência), detalhe que evidência uma busca moralmente correta e não conflitante com suas origens e lembranças, Lotso ainda possui esperança, o sol ainda não se pôs totalmente. Percebemos o desamparo daqueles brinquedos, deslocando-se sobre um vasto pasto, enquadrados em uma panorâmica, cujo ângulo levemente inclinado para baixo (plongée), ressalta seu isolamento e sua inferioridade.
Na cena seguinte, Lotso surge à esquerda do quadro, em lado oposto e inferior à casa de Daisy, que fica na linha do horizonte e esconde o sol. O espaço pedregoso e a terra seca ressaltam o caminho árduo percorrido pelo urso. Auxiliado pelos amigos brinquedos, Lotso busca o último resquício daquela luz reconfortante da infância, onde permanece Daisy a brincar com seus brinquedos. E então, dá-se o choque que irá modificar toda a personalidade de Lotso. Transferindo a lente objetiva para dentro do quarto da criança, o plano é composto de tal forma que, ao isolar a personagem Lotso fora do espaço confortável e terno de seu passado, o faz deparar-se com a visão de seu duplo, tomando seu lugar. O duplo, segundo Otto Rank, psicanalista e estudioso freudiano desse tema, revela a angustiante experiência de deparar-se com o outro (alterego), e vê-lo como anunciador da morte da integridade do eu, ou seja, o que Lotso vê é parte de si mesmo que lhe é negada, que lhe é retirada, sofrendo profundamente com tal rejeição. A perda de sua própria identidade é simbolizada, posteriormente, pela quebra do coração de plástico.
O sofrimento interior e a reconstrução da personalidade traumatizada de Lotso são brilhantemente projetados na composição dos planos que se seguem. Por meio de uma montagem simbólica e metafórica, o espaço externo passa a ser uma extensão da psique de Lotso. Ao sofrer a dor da rejeição, Lotso chora lágrimas de chuva que escorrem pela janela (sim, a Pixar consegue representar o choro de um brinquedo concretamente). Nota-se, na cena seguinte, que Lotso afasta-se de seu passado, dando as costas a ele, e a câmera, neste momento, o enquadra em um ângulo levemente inclinado para cima (contra-plongée). Lotso, tomando todo o quadro, é representado em posição de superioridade e, a partir daquele momento, passa a fazer uso autoritário e impiedoso de sua posição central de liderança.
Lotso passa a ser sempre motivado pelo rancor e o ódio que carrega dentro de si e que se estampa na pelúcia não mais cintilante, mas suja e rude, resultado de todas as desilusões acometidas pelo passado. Tem-se, nas cenas que se seguem, o processo de construção da personalidade má de Lotso, representada em várias de suas atitudes de opressão e de raiva. Vemos o urso retirar-se do quadro central pelo lado esquerdo, contrastando com a cena anterior onde se voltava para a direita mantendo viva uma última esperança. O lado esquerdo marca também sua decaída, sua corrupção, pois, em mais uma das várias citações ou referências à saga Guerra nas Estrelas contidas no filme, Lotso volta-se para o lado negro da noite tempestuosa (reflexo do seu íntimo em conflito). Nota-se, na cena seguinte, quando Chuckles tenta persuadi-lo a voltar, como sua imagem cresce no quadro, e em um jogo de campo e contra-campo, Lotso aparece novamente enquadrado em contra-plongée e Jockles acossado, inferiorizado, envolto pela sombra enorme do urso. O outro brinquedo, Bebezão, também é oprimido, impedido de retornar ao lar da criança.
Lotso e seus subordinados, não mais amigos, aprofundam-se na noite fria e chuvosa. E após serem lançados bruscamente sobre poças de água por um carro do Pizza Planet (em uma pequena participação), chegam à creche Sunnyside. Lugar que nos é apresentado pela segunda vez, mas que agora se mostra envolta pela atmosfera de “ruína e desespero” na qual Lotso está envolto. Sunnyside encontra-se submersa pela escuridão, e seu letreiro é apenas iluminado por estrondosos relâmpagos, projetando no espaço físico a angústia emocional de Lotso, e tornando tal espaço um lugar inóspito e aterrador. É interessante observar o contraste construído nesse espaço, a partir dos recursos visuais e sonoros utilizados na cena: Sunnyside, que em uma tradução livre significa lado ensolarado, apresenta-se como lugar sombrio e misterioso, guardando uma relação tensa e ilusória entre sua aparência amena e agradável (passado de Lotso) e sua essência corrupta e opressora, tornando-se espaço espelho da trajetória da personagem Lotso e onde este adentra, encontrando sua nova identidade.
Concluímos nosso breve comentário aqui. Após esta rápida leitura dos efeitos de sentido produzidos pelos recursos da linguagem cinematográfica empregados nessa sequência, podemos perceber com mais agudez o que faz da Pixar um dos estúdios mais engenhosos e criativos do cinema atual. Brilhantes!

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Comentário Crítico sobre o filme "Última Parada 174"




Revisitando a fecunda história do jovem carioca Sandro do Nascimento, cujo destino trágico, após o seqüestro de um ônibus, foi transmitido ao vivo por várias emissoras de TV, o longa Última Parada 174, de Bruno Barreto, caminha na contramão de seu antecessor nos cinemas, o documentário Ônibus 174, dirigido por José Padilha (Tropa de Elite 1 e 2) e mundialmente premiado. Ficcionalizando a trajetória real desse jovem morador de rua, usuário de drogas e assaltante de semáforos em Copacabana, o roteiro escrito por Bráulio Mantovani (Cidade de Deus e Tropa de Elite) faz bom uso do entrecruzamento de subtramas e de metáforas temáticas, que amarram bem os fios narrativos e dão aos fatos apresentados na tela uma coerência cheia de simbolismos. Porém, enfraquecido pela ausência de bons diálogos, o mesmo roteiro perde muito de sua força dramática ao ser interpretado de forma insegura e negligente pelos atores que encabeçam o elenco, muitos deles desconhecidos do grande público.

Com uma direção contida e raras vezes inventiva, Bruno Barreto escolhe manter a essência documental da narrativa, privilegiando um tratamento realista da imagem ao construir visualmente os ambientes onde interagem as personagens. Muitas sequências têm seu realismo potencializado pela fotografia crua, texturizada a partir de cores primárias que, intercaladas durante a projeção, contribuem para o envolvimento emocional do espectador (o azul intensifica momentos de desamparo e tristeza, o vermelho gera tensão em cenas de violência, e o amarelo, cor rara durante o filme, suspende o tom realista em momentos de solidariedade e esperança).
A direção de arte, responsável por caracterizar materialmente a pobreza estereotipada das favelas brasileiras, contribui para a construção de alguns planos interessantes e criativos que, por ironia ou jogo metafórico, caracterizam certas atitudes e motivações de algumas personagens: têm-se cenas como a que Sandro entra pela primeira vez na casa de sua mãe “verdadeira” e, num plano em que a figura da mãe aparece centralizada, nota-se que às suas costas há uma frase de boas vindas, algo que destaca seu caráter materno, pronto a acolher qualquer filho desgarrado; outro momento curioso encontra-se na sequência em que Sandro faz amor com uma jovem, e, por meio de um corte entre tais cenas, se insere um plano onde os dois comem pizza aos pés da cama, algo que se opõe ao almoço familiar do pastor e a mãe adotiva de Sandro, ressaltando, assim, a diferença de postura entre as figuras femininas em relação ao casamento e à vida familiar.

Respeitando o percurso linear da narrativa e criando efeitos de causalidade na sucessão dos fatos, Barreto faz uso de uma montagem próxima do documental televisivo, com vários cortes e saltos temporais, utilizando-se, para isso, de transições muitas vezes inventivas entre os planos, como na sequência em que Sandro passa de menino a homem, apenas em um movimento de câmera que enquadra e posteriormente se afasta de um cobertor. No entanto, tentado a marcar redundantemente os primeiros saltos temporais do filme, o diretor incorre em uma transição apressada e deselegante nos primeiros minutos de projeção, apresentando duas datas diferentes em dois quadros sucessivos.

Tais problemas em relação aos aspectos técnicos poderiam ser vistos como pecadilhos, caso o filme não apresentasse tamanha falta de entrega do elenco, que se restringe à estereotipia do linguajar dos morros cariocas, não convencendo o público e nem a si mesmos do caráter dramático e mesmo violento que tal linguagem possui.
Última Parada 174 não é um filme que se aprofunda em questões políticas, institucionais e socioculturais como seus antecessores (Cidade de Deus e os Tropa de Elite), tornando uma abordagem temática do longa a partir desses vieses uma experiência superficial e por vezes vazia de argumentos contundentes que justifiquem verdadeiramente as ações e destinos das personagens. No entanto, considerando alguns elementos temáticos recorrentes no longa, percebemos que a trajetória de duas personagens centrais, mãe e filho, constituem, na relação entre si, uma interessante e comovente representação do sentimento de orfandade e impotência do ser humano frente à degeneração do seio familiar e à desumanização causada pela sociedade do poder e da violência.

Barreto apresenta na primeira cena do filme os principais eixos temáticos que permearão toda a narrativa, estabelecendo os elementos dramáticos que irão constituir o passado traumático das personagens e que irão motivar as ações de cada uma delas ao longo da narrativa: entre a realidade miserável da favela e a realidade idealizada da TV se coloca uma mãe amamentando seu filho. Nesta curta cena inicial, estabelece-se um importante movimento de identificação entre as personagens: da mulher que carrega vícios e estigmas de uma vivência degradante passa-se em seus poucos passos à imagem da mãe, que se rejubila na prática materna do aleitamento, atendendo às suplicas de sua criança faminta. Temos, neste quadro delicado e profundo, a união plena das relações identitárias entre mãe e filho. O materno, representado na figura da mãe, simboliza o lugar primeiro de existência, fonte de alimento, refúgio e proteção contra um mundo exterior, estranho e opressor.

Dando continuidade à cena, tem-se a inserção de uma terceira personagem no quadro dramático: a figura masculina do traficante, que surge como elemento externo, representando, dentro do espaço familiar, a violência e a repressão de uma sociedade pautada no poder e na força. Pela ação autoritária e desastrosa do traficante se estabelece a dissolução do quadro materno, a separação traumática de mãe e filho, levando ambos, fragmentados, a errarem por caminhos tortuosos e confusos em busca da metade perdida que os concerne, o que nos remete a uma busca pelos sentimentos de completude e felicidade tantas vezes negligenciados em um meio degradante e persecutório.

Após esse início promissor, acompanhamos o desenrolar da história de (Alê)Sandro, cujo nome dado pela mãe fragmenta-se após o afastamento da mesma. A trajetória de Alessandro tem como pano de fundo a realidade marginal dos morros cariocas e suas escolhas não o conduzem para um destino diferente do de muitos meninos como ele. Porém, sua trajetória adquire força dramática na representação de uma busca redentora pela superação do sentimento de orfandade. Desde os primeiros acontecimentos até seu desfecho, a vida de Sandro mostra-se permeada pela violência e pela traição de figuras masculinas que atravessam seu caminho. É tocante perceber que Sandro procura vivenciar, mesmo que furtivamente, com todas as mulheres que cruzam seu caminho, o vínculo primário perdido, buscando sempre o aconchego do ventre feminino: em cenas como a que Alessandro recai sobre o corpo da mãe adotiva morta a facadas; aconchega-se no colo de sua namorada após o rompimento do namoro; ou quando pede desculpas à mãe, após uma noite muito difícil.

Facas e copos adquirem, no procedimento de construção dramática das imagens, fundamental função representativa do masculino e do feminino, respectivamente, materializando na imagem o processo simbólico pelo qual passa Sandro, importando-se com a fragilidade do vidro e negando a lamina cortante das facas, num processo castrador de quebra das suas pontas e de investigação das cicatrizes que estas lhe deixaram.

E por fim, tem-se nos últimos 10 minutos de projeção, a sequência que tornou conhecida a personagem Sandro do Nascimento. Encerrando de forma coesa e coerente o arco dramático construído pela personagem durante a projeção, vemos Sandro, após romper com a namorada, motivado pela traição masculina (agora de seu “pseudo-irmão” bastardo, seu duplo mais violento), percorrer as calçadas da Candelária, onde passara parte de sua infância e juventude, e, numa última busca por refúgio e proteção, adentrar o fatídico ônibus 174. Oscilando entre as panorâmicas do ônibus e as cenas do interior do mesmo, a sequência final sintetiza a interessante relação de Sandro com o vínculo materno perdido. Simbolizando um espaço intra-uterino de proteção e isolamento do mundo exterior, o ônibus passa a representar para Sandro um último amparo frente à violência e abuso de poder que parte da sociedade lhe impingiu durante toda sua vida. Não à toa é um homem que sai do ônibus e o denuncia, e mais tocante ainda, é sua última tentativa de busca do feminino, mantendo apenas mulheres no interior do veículo.

No entanto, a sociedade lhe exige uma retratação, exige que saia do conforto e do refúgio materno, exige que encare sua condição social, todo seu passado e enfim, todos os desenganos de uma existência repleta de grandes sofrimentos e pequenos milagres, onde facas são pontiagudas e copos frágeis podem se quebrar. Num sufocante plano final, a ficção toma de assalto a realidade, e, nós, espectadores, partilhamos da mesma sepultura, escuridão total, onde Sandro encontra finalmente seu último refúgio, com a mensagem de morte vinda de fora, em um som seco e dolorosamente pesado.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A Arte como Fonte da Vida


Uma obra de arte possui o poder, diria, mágico, de revelar o infinito e o invisível através do arranjo finito e visível de seus elementos conceituais e expressivos. Na Arte, uma obra é prima quando consuma sua capacidade de conduzir o Ser Humano ao alumbramento de sua própria condição, devolvendo ao Ser o estado primeiro de iluminação e transcendência.




Prosseguiremos, neste post, a uma possibilidade de leitura/interpretação para o filme Fonte da Vida, comentado no post anterior. Tal leitura privilegiará os elementos temáticos que estruturam a narrativa, reiterando, por vezes, alguns aspectos expressivos da linguagem fílmica apontados anteriormente.
Utilizando-se dos recursos de símile visual e sonora, já discutidos nesta análise, Fonte da Vida estabelece uma estrutura de narrativas paralelas ligadas ao tema central da busca pela superação da morte. Considerando que o presente narrativo centra-se no drama de um neurologista à procura da cura do câncer, tem-se certo principio de equivalência mantido na elaboração temática das narrativas paralelas, por exemplo: o câncer, signo da degeneração da carne e destruição da vida, é reiterado na figura auto-flageladora e desumana do inquisidor. Vemos o inquisidor embeber com sangue uma vasta extensão do mapa da Espanha, em uma clara alusão ao tumor maligno que toma o corpo jovem da escritora, na narrativa principal.
A correspondência entre Isabel, a rainha da Espanha, e Izzy, a jovem esposa, se revela fundamental para pensarmos na ampliação de significados que recebe esta personagem feminina. Fonte da Vida tem início com uma citação do livro do gênese, da Bíblia Cristã, em que a figura feminina de Eva e a figura masculina de Adão, por terem provado da árvore da sabedoria, são apresentadas como exilados do paraíso, exílio este que lhes impede o acesso à árvore da vida. No filme, a figura feminina é apresentada como aquela que revela a condição finita da existência humana, mas que guarda em si, também, a possibilidade de superação desta consciência de finitude. A mulher gesta a vida em seu ventre, oferece a oportunidade para o Ser humano renascer em uma vida posterior, da mesma forma que nasceu de uma vida pregressa. O motivo da circularidade não apenas representa esta continuidade infinita, mas relaciona-se intimamente à figura feminina: a coroa da rainha e seu vestido, o anel dourado, o centro do ostensório, objeto de adoração religioso do conquistador. O que se mostra fundamental observar é que as personagens femininas, interpretadas por Rachel Weisz, compreendem a doença cancerígena (em sua face patológica como tumor maligno e em sua face histórica como instituição religiosa) não como uma presentificação angustiante da morte, mas como motivo para se buscar a vida, ou melhor, a consciência de vida, busca esta que se mostra central na trajetória da personagem masculina, que passará do repúdio à morte (“a morte é uma doença, e vou encontrar a cura”) à aceitação da mesma (“eu vou morrer”).
E é neste ponto, quando observamos a posição protagonista dada às personagens interpretadas por Hugh Jackman, que encontramos o fio central que une fundamentalmente as três narrativas. As estórias paralelas não aparecem datadas e, como vimos, mostram-se impregnadas de projeções e reflexões temáticas originadas da trama central (a narrativa histórico-mítica existe porque foi escrita no presente, incorporando elementos deste tempo; fatos do presente narrativo irrompem na permanência solitária do homem na bolha de plasma). Concluímos que Fonte da Vida trata da trajetória de uma única personagem distendida espaço-temporalmente. Esta distensão espaço-temporal permite, portanto, uma leitura alegórica para as narrativas paralelas, revelando-as como desdobramentos filosóficos, psíquicos e históricos de uma personagem que se faz arquétipo da condição humana, condensando em si os principais elementos que compõe o pensamento moderno sobre a humanidade.
A existência dramática contemporânea de Tommy Creo se vê impregnada das projeções míticas de uma tradição ancestral, que vai desde o uso científico do tecido de uma árvore originária da América Central até a visita a um museu de história maia. Na narrativa lida e, posteriormente, concluída por Tommy, a jornada do conquistador ao novo mundo, em busca da árvore da vida, ganha significado de uma busca horizontal (imanente) pela fonte da vida. Esta busca é regida pela compreensão e aceitação dos princípios de feminilidade (o pedido de uma Rainha é o que motiva o conquistador; os exploradores são guiados por círculos; e, não à toa, tal narrativa é, inicialmente, escrita por uma mulher). O elemento telúrico e pagão representa esta feminilidade horizontal, a valorização da Terra como origem da vida, que, voltada a uma perspectiva animista de existência, faz renascer o corpo-semente plantado na terra. A raiz horizontal representa uma sustentação imanente, eterna e natural do corpo, cuja alma se quer transcendente. Neste plano narrativo, algumas dicotomias temáticas são “parcialmente” resolvidas: a Natureza mostra ao Homem que a vida eterna não está fora do corpo ou na sua superação, mas no movimento cíclico de reincorporação dos elementos constituintes do corpo à fonte orgânica natural (belissimamente representado na cena em que florescem botões do corpo “ferido” do conquistador); o conflito entre a crença pagã na imortalidade mediada pela natureza e a crença cristã na imortalidade mediada pela espiritualidade divina se resolve apresentando certa crítica aos dogmas concebidos pela institucionalização das crenças em ambas as culturas: assim como o padre é morto antes de alcançar a árvore da vida (em certo momento o conquistador fala: “para o padre só existe a morte, mas para nós a vida eterna”), o sacerdote maia também se oferece em sacrifício, buscando a morte como forma de culto à divindade.
No plano metafísico, ocorre a interiorização psíquica dos fatos do presente narrativo, onde Tommy, em seus momentos de introspecção e auto-reflexão, empreende uma busca inconsciente pela compreensão dos acontecimentos que cercam sua própria existência, transformando-os em impulso para um último ato de transcendência extracorpórea. Neste plano, o movimento é vertical, mimetizado pelo deslocamento da esfera rumo à estrela que está preste a morrer. A árvore que seca é o corpo da amada que morre, é a existência do feminino natural, presença orgânica em um ambiente totalmente metafísico, nutrindo o Ser e mantendo sua integridade psíquica (em algumas cenas, Tommy ingere cascas do tronco da árvore). Neste espaço psíquico, as aparições de Izzy (enquanto mulher e rainha) estão ligadas ao processo de luto pelo qual passa o neurologista. Sua existência psíquica é preenchida pela figura feminina, com seu desaparecimento (interiorizado pelo enrijecimento da árvore), as imagens femininas começam a lhe causar medo e sofrimento. Segundo Freud, “O luto tem uma missão psíquica muito específica a efetuar; sua função é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos sobreviventes. Quando isto é conseguido, o sofrimento diminui e, com ele, o remorso e as autocensuras e, consequentemente, também o medo dos demônios.”. Para Tommy, o remorso é fruto de um desejo de morte inconsciente, uma obsessão pela destruição de algo que se quer sempre presente. A busca pela cura do câncer e pela eternidade da vida fez com que se distanciasse cada vez mais de sua amada. O desamparo e a ausência do elemento feminino são representados pelo anel perdido, apenas marca cinza sobre o dedo (elo ligado à lembrança da mulher em todas as narrativas), e que se intensifica no tempo psíquico (os vários círculos que lhe tomam todo o braço, semelhantes aos círculos do tronco de árvore velha). Por repudiar com tal veemência a morte, o homem esqueceu-se da vida (“tudo o que ele conseguiu ver era a morte”). O feminino perdido, como representação da continuidade cíclica natural, necessita ser reincorporado ao Ser, não em sua existência corpórea, imanente, já integrado à terra, mas em sua existência psíquica, espiritual, completando o processo de preenchimento do vazio pela resignificação das lembranças. Durante o filme, uma lembrança mostra-se recorrente, intensificando o sofrimento de Tommy, a recordação de Izzy chamando-o para caminharem juntos sobre a neve. Esta lembrança é resignificada ao final da trama. Tommy, que antes se encontrava mergulhado nas sombras de um corredor escuro, afastando-se de Izzy, agora inverte seu caminho, dirigindo-se à luz. Tal ação final conclui o arco dramático construído pelo protagonista em todos seus desdobramentos narrativos.
Fonte da vida conclui-se com a união do masculino e do feminino, do corpo e alma, do espiritual e do natural, a comunhão entre a cruz (síntese da trajetória horizontal e vertical do homem) e a coroa (símbolo da completude cíclica, natural e feminina), muito bem representada pelo ostensório religioso. O infinito como existência completa e eterna dá-se no caráter cíclico da representação da vida, possível na representação ontológica do tempo-espaço da existência humana: o tempo é a projeção psíquica do Ser, que se distende em lembrança e esperança, ou seja, o passado e o futuro não estão em nenhum momento fora do Ser, mas constituem sua integridade psíquica, em uma existência infinita. Resultado da união do feminino e do masculino, o espaço é corpóreo, fruto que se disseminou preenchendo vazios e compondo o cosmos.
Muitas observações devem feitas sobre esta brilhante composição cinematográfica chamada Fonte da Vida, pois não podemos negar seu caráter infinito ao representar-se tão brilhantemente em uma projeção que tem seu fim após 90 minutos de vida.

Comentário crítico sobre o filme "Fonte da Vida", de Darren Aronofsky



Roteirizado e dirigido com admirável coesão e sensibilidade pelo diretor Darren Aronofsky (Réquiem for a Dream e Black Swan), Fonte da Vida traz em sua temática, centrada na busca pela superação da morte, uma instigante reflexão sobre a condição humana e sobre a ancestral consciência da (in)finitude do Ser, algo que está além das dicotomias estabelecidas pela narrativa (vida e morte, amor e fé, natureza e homem, primitivo e civilizado, catolicismo e paganismo, etc.).
Fonte da Vida concentra-se no drama de um neurologista (Hugh Jackman), cuja esposa (Rachel Weisz) encontra-se próxima à morte, vitimada pelo desenvolvimento de um câncer em uma determinada região do cérebro. Este homem, atormentado pela iminente perda da amada, vê, nas pesquisas científicas com macacos, uma chance de salva-lá. Esta narrativa principal desenvolve-se juntamente com outras duas narrativas, que, paralelas à primeira, acabam refletindo os estados e as ações das personagens centrais, ampliando seus significados psíquicos, filosóficos e históricos. Uma delas ambienta-se em um passado histórico, século XVI(?), quando a Espanha, dominada pelo catolicismo inquisidor, volta-se para a conquista do novo mundo. Construída como uma estória mítica permeada por elementos telúricos e pagãos, tal narrativa relata a incursão de um conquistador espanhol (Hugh Jackman) pelas matas selvagens e sombrias da América, em busca da árvore da vida, que dará, a ele e à sua rainha (Rachel Weisz), a eternidade. A segunda narrativa, projetada em um momento “futuro”, século XXVI (?), apresenta uma bolha gigante de plasma que se movimenta verticalmente em direção a uma estrela prestes a desaparecer (Shibalba, segundo os Maias). Em seu interior, encontram-se uma árvore, prestes a morrer, e um Ser Humano (Hugh Jackman), que, alimentando-se da casca dessa árvore, espera o momento da morte/explosão da estrela, meditando suas lembranças.
Na tessitura dramática de A Fonte da Vida, os elementos expressivos da linguagem fílmica realizam-se em perfeito equilíbrio e correspondência com a estrutura narrativa, por vezes complexa, construída durante a projeção. A fotografia contrastante, o enquadramento e a excelente elaboração dos planos, a montagem inventiva das sequências, a trilha belissimamente orquestrada e a atuação poderosa do par central costuram eficazmente os tecidos dramáticos paralelos que se desenvolvem simultaneamente, contribuindo para uma coerência narrativa plena de simbologias.
A fotografia é primorosa em seus aspectos cromáticos e de intensidade. A luz dourada transfere grandiosidade e sacralidade aos elementos que se apresentam na tela, evidenciando o caráter mítico e heróico da história narrada. Pela fotografia se combinam, visualmente, os três espaços narrativos, fazendo com que, por exemplo, a espetacular nebulosa do espaço futuro se delineie no espaço presente pelas refrações da luz sobre as vidraças ou pela visão microscópica de um tecido vivo, contaminando, também, o passado histórico-mítico, culminando no belíssimo símile originado na copa da árvore da vida, iluminada pela luz dourada de um sol crepuscular. As estrelas que revestem o espaço futuro são mimetizadas pelas velas no espaço passado, como no grande salão onde o conquistador encontra-se com sua rainha, circundado por velas suspensas, mantendo, desta forma, uma fonte de luz primária no espaço. Com um início quase totalmente mergulhado na escuridão, Fonte da Vida desenvolve sua narrativa utilizando focos circulares de luz branca em vários momentos de belíssimos contrastes, apresentando, em seu desfecho, uma explosão luminosa, cuja intensidade praticamente inunda a tela de um branco absoluto. A intensidade da luz branca estabelece, para a construção narrativa, dicotomias temáticas fundamentais, como: escuridão x luz; mistério x revelação; imanência x transcendência; amparo x desamparo; medo x paz; ausência x presença; entre outros pares; compondo, pelo tratamento da imagem, uma metaforização visual do movimento existencial do Ser Humano, que parte da ignorância e imanência do mundo físico em direção à revelação e à transcendência vivenciada pela morte, consciência de sua finitude (desenvolverei esta leitura mais a frente).
O tratamento visual dado às imagens é realçado pela segura e inventiva condução dos planos e sequências. Planos construídos em plongée (filmagem de cima para baixo) viabilizam a correspondência ou a duplicação de motivos narrativos, amarrando as narrativas paralelas à trama central através de símiles visuais e temáticos (como exemplo: as cenas em que Tomás e Tommy passam, a cavalo e de carro, respectivamente, por uma estrada, e é mantido o mesmo enquadramento; ou a correspondência entre o movimento de giro da esfera de plasma e o movimento circular praticado por Tommy sob o desenho esférico do piso do saguão do hospital – dado importante para pensarmos na narrativa metafísica como introjeção psíquica dos fatos externos ao sujeito). Em interessante contraponto visual com a extensão dos cenários, os planos detalhes ou primeiríssimos planos também constroem belíssimos símiles visuais. Tal fato justifica-se pelo processo de equivalência simbólica dos elementos constituintes de cada sequência narrativa. Em Fonte da Vida, a montagem privilegia tais construções metafóricas, combinando os elementos constituintes de planos narrativos diferentes. Encontramos outros belos exemplos desta transição significativa dos planos nas correspondências entre uma árvore e o corpo feminino, em que a extensão rígida e áspera do tronco se transforma na pele macia e lisa da mulher, ou os minúsculos cílios da casca arbórea são substituídos pelos pêlos da nuca feminina.
Bem aplicada ao longo de todo o filme, a bela trilha sonora composta por Clint Mansell (Réquiem for a dream) desempenha, também, o papel de costurar as narrativas, não apenas harmonizando sonoramente as rimas visuais construídas pela transição dos planos, mas construindo interessantes variações do tema musical aplicado à narrativa central, auxiliando na distensão do momento presente em dois momentos tematicamente distintos: no passado mítico-histórico, o arranjo musical incorpora o som de tambores que, além de criar uma atmosfera de suspense e urgência, envolve o espectador em um ambiente tribal ritualístico; no “futuro” metafísico, os tambores são substituídos por instrumentos de corda (violoncelo e violino), que, permeados por momentos de silêncio, constroem uma atmosfera mais calma e plena de espiritualidade. Um pequeno prejuízo no uso da trilha encontra-se nas sequências finais, em que algumas cenas de ação crescente, intensificadas pela poderosa composição sonora, são entrecortadas por tomadas mais lentas, que acabam fragmentando o ritmo encadeado pela trilha.