Olhares em números

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Comentário crítico sobre o filme "Fonte da Vida", de Darren Aronofsky



Roteirizado e dirigido com admirável coesão e sensibilidade pelo diretor Darren Aronofsky (Réquiem for a Dream e Black Swan), Fonte da Vida traz em sua temática, centrada na busca pela superação da morte, uma instigante reflexão sobre a condição humana e sobre a ancestral consciência da (in)finitude do Ser, algo que está além das dicotomias estabelecidas pela narrativa (vida e morte, amor e fé, natureza e homem, primitivo e civilizado, catolicismo e paganismo, etc.).
Fonte da Vida concentra-se no drama de um neurologista (Hugh Jackman), cuja esposa (Rachel Weisz) encontra-se próxima à morte, vitimada pelo desenvolvimento de um câncer em uma determinada região do cérebro. Este homem, atormentado pela iminente perda da amada, vê, nas pesquisas científicas com macacos, uma chance de salva-lá. Esta narrativa principal desenvolve-se juntamente com outras duas narrativas, que, paralelas à primeira, acabam refletindo os estados e as ações das personagens centrais, ampliando seus significados psíquicos, filosóficos e históricos. Uma delas ambienta-se em um passado histórico, século XVI(?), quando a Espanha, dominada pelo catolicismo inquisidor, volta-se para a conquista do novo mundo. Construída como uma estória mítica permeada por elementos telúricos e pagãos, tal narrativa relata a incursão de um conquistador espanhol (Hugh Jackman) pelas matas selvagens e sombrias da América, em busca da árvore da vida, que dará, a ele e à sua rainha (Rachel Weisz), a eternidade. A segunda narrativa, projetada em um momento “futuro”, século XXVI (?), apresenta uma bolha gigante de plasma que se movimenta verticalmente em direção a uma estrela prestes a desaparecer (Shibalba, segundo os Maias). Em seu interior, encontram-se uma árvore, prestes a morrer, e um Ser Humano (Hugh Jackman), que, alimentando-se da casca dessa árvore, espera o momento da morte/explosão da estrela, meditando suas lembranças.
Na tessitura dramática de A Fonte da Vida, os elementos expressivos da linguagem fílmica realizam-se em perfeito equilíbrio e correspondência com a estrutura narrativa, por vezes complexa, construída durante a projeção. A fotografia contrastante, o enquadramento e a excelente elaboração dos planos, a montagem inventiva das sequências, a trilha belissimamente orquestrada e a atuação poderosa do par central costuram eficazmente os tecidos dramáticos paralelos que se desenvolvem simultaneamente, contribuindo para uma coerência narrativa plena de simbologias.
A fotografia é primorosa em seus aspectos cromáticos e de intensidade. A luz dourada transfere grandiosidade e sacralidade aos elementos que se apresentam na tela, evidenciando o caráter mítico e heróico da história narrada. Pela fotografia se combinam, visualmente, os três espaços narrativos, fazendo com que, por exemplo, a espetacular nebulosa do espaço futuro se delineie no espaço presente pelas refrações da luz sobre as vidraças ou pela visão microscópica de um tecido vivo, contaminando, também, o passado histórico-mítico, culminando no belíssimo símile originado na copa da árvore da vida, iluminada pela luz dourada de um sol crepuscular. As estrelas que revestem o espaço futuro são mimetizadas pelas velas no espaço passado, como no grande salão onde o conquistador encontra-se com sua rainha, circundado por velas suspensas, mantendo, desta forma, uma fonte de luz primária no espaço. Com um início quase totalmente mergulhado na escuridão, Fonte da Vida desenvolve sua narrativa utilizando focos circulares de luz branca em vários momentos de belíssimos contrastes, apresentando, em seu desfecho, uma explosão luminosa, cuja intensidade praticamente inunda a tela de um branco absoluto. A intensidade da luz branca estabelece, para a construção narrativa, dicotomias temáticas fundamentais, como: escuridão x luz; mistério x revelação; imanência x transcendência; amparo x desamparo; medo x paz; ausência x presença; entre outros pares; compondo, pelo tratamento da imagem, uma metaforização visual do movimento existencial do Ser Humano, que parte da ignorância e imanência do mundo físico em direção à revelação e à transcendência vivenciada pela morte, consciência de sua finitude (desenvolverei esta leitura mais a frente).
O tratamento visual dado às imagens é realçado pela segura e inventiva condução dos planos e sequências. Planos construídos em plongée (filmagem de cima para baixo) viabilizam a correspondência ou a duplicação de motivos narrativos, amarrando as narrativas paralelas à trama central através de símiles visuais e temáticos (como exemplo: as cenas em que Tomás e Tommy passam, a cavalo e de carro, respectivamente, por uma estrada, e é mantido o mesmo enquadramento; ou a correspondência entre o movimento de giro da esfera de plasma e o movimento circular praticado por Tommy sob o desenho esférico do piso do saguão do hospital – dado importante para pensarmos na narrativa metafísica como introjeção psíquica dos fatos externos ao sujeito). Em interessante contraponto visual com a extensão dos cenários, os planos detalhes ou primeiríssimos planos também constroem belíssimos símiles visuais. Tal fato justifica-se pelo processo de equivalência simbólica dos elementos constituintes de cada sequência narrativa. Em Fonte da Vida, a montagem privilegia tais construções metafóricas, combinando os elementos constituintes de planos narrativos diferentes. Encontramos outros belos exemplos desta transição significativa dos planos nas correspondências entre uma árvore e o corpo feminino, em que a extensão rígida e áspera do tronco se transforma na pele macia e lisa da mulher, ou os minúsculos cílios da casca arbórea são substituídos pelos pêlos da nuca feminina.
Bem aplicada ao longo de todo o filme, a bela trilha sonora composta por Clint Mansell (Réquiem for a dream) desempenha, também, o papel de costurar as narrativas, não apenas harmonizando sonoramente as rimas visuais construídas pela transição dos planos, mas construindo interessantes variações do tema musical aplicado à narrativa central, auxiliando na distensão do momento presente em dois momentos tematicamente distintos: no passado mítico-histórico, o arranjo musical incorpora o som de tambores que, além de criar uma atmosfera de suspense e urgência, envolve o espectador em um ambiente tribal ritualístico; no “futuro” metafísico, os tambores são substituídos por instrumentos de corda (violoncelo e violino), que, permeados por momentos de silêncio, constroem uma atmosfera mais calma e plena de espiritualidade. Um pequeno prejuízo no uso da trilha encontra-se nas sequências finais, em que algumas cenas de ação crescente, intensificadas pela poderosa composição sonora, são entrecortadas por tomadas mais lentas, que acabam fragmentando o ritmo encadeado pela trilha.

Um comentário: