Olhares em números

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A Arte como Fonte da Vida


Uma obra de arte possui o poder, diria, mágico, de revelar o infinito e o invisível através do arranjo finito e visível de seus elementos conceituais e expressivos. Na Arte, uma obra é prima quando consuma sua capacidade de conduzir o Ser Humano ao alumbramento de sua própria condição, devolvendo ao Ser o estado primeiro de iluminação e transcendência.




Prosseguiremos, neste post, a uma possibilidade de leitura/interpretação para o filme Fonte da Vida, comentado no post anterior. Tal leitura privilegiará os elementos temáticos que estruturam a narrativa, reiterando, por vezes, alguns aspectos expressivos da linguagem fílmica apontados anteriormente.
Utilizando-se dos recursos de símile visual e sonora, já discutidos nesta análise, Fonte da Vida estabelece uma estrutura de narrativas paralelas ligadas ao tema central da busca pela superação da morte. Considerando que o presente narrativo centra-se no drama de um neurologista à procura da cura do câncer, tem-se certo principio de equivalência mantido na elaboração temática das narrativas paralelas, por exemplo: o câncer, signo da degeneração da carne e destruição da vida, é reiterado na figura auto-flageladora e desumana do inquisidor. Vemos o inquisidor embeber com sangue uma vasta extensão do mapa da Espanha, em uma clara alusão ao tumor maligno que toma o corpo jovem da escritora, na narrativa principal.
A correspondência entre Isabel, a rainha da Espanha, e Izzy, a jovem esposa, se revela fundamental para pensarmos na ampliação de significados que recebe esta personagem feminina. Fonte da Vida tem início com uma citação do livro do gênese, da Bíblia Cristã, em que a figura feminina de Eva e a figura masculina de Adão, por terem provado da árvore da sabedoria, são apresentadas como exilados do paraíso, exílio este que lhes impede o acesso à árvore da vida. No filme, a figura feminina é apresentada como aquela que revela a condição finita da existência humana, mas que guarda em si, também, a possibilidade de superação desta consciência de finitude. A mulher gesta a vida em seu ventre, oferece a oportunidade para o Ser humano renascer em uma vida posterior, da mesma forma que nasceu de uma vida pregressa. O motivo da circularidade não apenas representa esta continuidade infinita, mas relaciona-se intimamente à figura feminina: a coroa da rainha e seu vestido, o anel dourado, o centro do ostensório, objeto de adoração religioso do conquistador. O que se mostra fundamental observar é que as personagens femininas, interpretadas por Rachel Weisz, compreendem a doença cancerígena (em sua face patológica como tumor maligno e em sua face histórica como instituição religiosa) não como uma presentificação angustiante da morte, mas como motivo para se buscar a vida, ou melhor, a consciência de vida, busca esta que se mostra central na trajetória da personagem masculina, que passará do repúdio à morte (“a morte é uma doença, e vou encontrar a cura”) à aceitação da mesma (“eu vou morrer”).
E é neste ponto, quando observamos a posição protagonista dada às personagens interpretadas por Hugh Jackman, que encontramos o fio central que une fundamentalmente as três narrativas. As estórias paralelas não aparecem datadas e, como vimos, mostram-se impregnadas de projeções e reflexões temáticas originadas da trama central (a narrativa histórico-mítica existe porque foi escrita no presente, incorporando elementos deste tempo; fatos do presente narrativo irrompem na permanência solitária do homem na bolha de plasma). Concluímos que Fonte da Vida trata da trajetória de uma única personagem distendida espaço-temporalmente. Esta distensão espaço-temporal permite, portanto, uma leitura alegórica para as narrativas paralelas, revelando-as como desdobramentos filosóficos, psíquicos e históricos de uma personagem que se faz arquétipo da condição humana, condensando em si os principais elementos que compõe o pensamento moderno sobre a humanidade.
A existência dramática contemporânea de Tommy Creo se vê impregnada das projeções míticas de uma tradição ancestral, que vai desde o uso científico do tecido de uma árvore originária da América Central até a visita a um museu de história maia. Na narrativa lida e, posteriormente, concluída por Tommy, a jornada do conquistador ao novo mundo, em busca da árvore da vida, ganha significado de uma busca horizontal (imanente) pela fonte da vida. Esta busca é regida pela compreensão e aceitação dos princípios de feminilidade (o pedido de uma Rainha é o que motiva o conquistador; os exploradores são guiados por círculos; e, não à toa, tal narrativa é, inicialmente, escrita por uma mulher). O elemento telúrico e pagão representa esta feminilidade horizontal, a valorização da Terra como origem da vida, que, voltada a uma perspectiva animista de existência, faz renascer o corpo-semente plantado na terra. A raiz horizontal representa uma sustentação imanente, eterna e natural do corpo, cuja alma se quer transcendente. Neste plano narrativo, algumas dicotomias temáticas são “parcialmente” resolvidas: a Natureza mostra ao Homem que a vida eterna não está fora do corpo ou na sua superação, mas no movimento cíclico de reincorporação dos elementos constituintes do corpo à fonte orgânica natural (belissimamente representado na cena em que florescem botões do corpo “ferido” do conquistador); o conflito entre a crença pagã na imortalidade mediada pela natureza e a crença cristã na imortalidade mediada pela espiritualidade divina se resolve apresentando certa crítica aos dogmas concebidos pela institucionalização das crenças em ambas as culturas: assim como o padre é morto antes de alcançar a árvore da vida (em certo momento o conquistador fala: “para o padre só existe a morte, mas para nós a vida eterna”), o sacerdote maia também se oferece em sacrifício, buscando a morte como forma de culto à divindade.
No plano metafísico, ocorre a interiorização psíquica dos fatos do presente narrativo, onde Tommy, em seus momentos de introspecção e auto-reflexão, empreende uma busca inconsciente pela compreensão dos acontecimentos que cercam sua própria existência, transformando-os em impulso para um último ato de transcendência extracorpórea. Neste plano, o movimento é vertical, mimetizado pelo deslocamento da esfera rumo à estrela que está preste a morrer. A árvore que seca é o corpo da amada que morre, é a existência do feminino natural, presença orgânica em um ambiente totalmente metafísico, nutrindo o Ser e mantendo sua integridade psíquica (em algumas cenas, Tommy ingere cascas do tronco da árvore). Neste espaço psíquico, as aparições de Izzy (enquanto mulher e rainha) estão ligadas ao processo de luto pelo qual passa o neurologista. Sua existência psíquica é preenchida pela figura feminina, com seu desaparecimento (interiorizado pelo enrijecimento da árvore), as imagens femininas começam a lhe causar medo e sofrimento. Segundo Freud, “O luto tem uma missão psíquica muito específica a efetuar; sua função é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos sobreviventes. Quando isto é conseguido, o sofrimento diminui e, com ele, o remorso e as autocensuras e, consequentemente, também o medo dos demônios.”. Para Tommy, o remorso é fruto de um desejo de morte inconsciente, uma obsessão pela destruição de algo que se quer sempre presente. A busca pela cura do câncer e pela eternidade da vida fez com que se distanciasse cada vez mais de sua amada. O desamparo e a ausência do elemento feminino são representados pelo anel perdido, apenas marca cinza sobre o dedo (elo ligado à lembrança da mulher em todas as narrativas), e que se intensifica no tempo psíquico (os vários círculos que lhe tomam todo o braço, semelhantes aos círculos do tronco de árvore velha). Por repudiar com tal veemência a morte, o homem esqueceu-se da vida (“tudo o que ele conseguiu ver era a morte”). O feminino perdido, como representação da continuidade cíclica natural, necessita ser reincorporado ao Ser, não em sua existência corpórea, imanente, já integrado à terra, mas em sua existência psíquica, espiritual, completando o processo de preenchimento do vazio pela resignificação das lembranças. Durante o filme, uma lembrança mostra-se recorrente, intensificando o sofrimento de Tommy, a recordação de Izzy chamando-o para caminharem juntos sobre a neve. Esta lembrança é resignificada ao final da trama. Tommy, que antes se encontrava mergulhado nas sombras de um corredor escuro, afastando-se de Izzy, agora inverte seu caminho, dirigindo-se à luz. Tal ação final conclui o arco dramático construído pelo protagonista em todos seus desdobramentos narrativos.
Fonte da vida conclui-se com a união do masculino e do feminino, do corpo e alma, do espiritual e do natural, a comunhão entre a cruz (síntese da trajetória horizontal e vertical do homem) e a coroa (símbolo da completude cíclica, natural e feminina), muito bem representada pelo ostensório religioso. O infinito como existência completa e eterna dá-se no caráter cíclico da representação da vida, possível na representação ontológica do tempo-espaço da existência humana: o tempo é a projeção psíquica do Ser, que se distende em lembrança e esperança, ou seja, o passado e o futuro não estão em nenhum momento fora do Ser, mas constituem sua integridade psíquica, em uma existência infinita. Resultado da união do feminino e do masculino, o espaço é corpóreo, fruto que se disseminou preenchendo vazios e compondo o cosmos.
Muitas observações devem feitas sobre esta brilhante composição cinematográfica chamada Fonte da Vida, pois não podemos negar seu caráter infinito ao representar-se tão brilhantemente em uma projeção que tem seu fim após 90 minutos de vida.

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