Olhares em números

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Comentário Crítico sobre o filme "Última Parada 174"




Revisitando a fecunda história do jovem carioca Sandro do Nascimento, cujo destino trágico, após o seqüestro de um ônibus, foi transmitido ao vivo por várias emissoras de TV, o longa Última Parada 174, de Bruno Barreto, caminha na contramão de seu antecessor nos cinemas, o documentário Ônibus 174, dirigido por José Padilha (Tropa de Elite 1 e 2) e mundialmente premiado. Ficcionalizando a trajetória real desse jovem morador de rua, usuário de drogas e assaltante de semáforos em Copacabana, o roteiro escrito por Bráulio Mantovani (Cidade de Deus e Tropa de Elite) faz bom uso do entrecruzamento de subtramas e de metáforas temáticas, que amarram bem os fios narrativos e dão aos fatos apresentados na tela uma coerência cheia de simbolismos. Porém, enfraquecido pela ausência de bons diálogos, o mesmo roteiro perde muito de sua força dramática ao ser interpretado de forma insegura e negligente pelos atores que encabeçam o elenco, muitos deles desconhecidos do grande público.

Com uma direção contida e raras vezes inventiva, Bruno Barreto escolhe manter a essência documental da narrativa, privilegiando um tratamento realista da imagem ao construir visualmente os ambientes onde interagem as personagens. Muitas sequências têm seu realismo potencializado pela fotografia crua, texturizada a partir de cores primárias que, intercaladas durante a projeção, contribuem para o envolvimento emocional do espectador (o azul intensifica momentos de desamparo e tristeza, o vermelho gera tensão em cenas de violência, e o amarelo, cor rara durante o filme, suspende o tom realista em momentos de solidariedade e esperança).
A direção de arte, responsável por caracterizar materialmente a pobreza estereotipada das favelas brasileiras, contribui para a construção de alguns planos interessantes e criativos que, por ironia ou jogo metafórico, caracterizam certas atitudes e motivações de algumas personagens: têm-se cenas como a que Sandro entra pela primeira vez na casa de sua mãe “verdadeira” e, num plano em que a figura da mãe aparece centralizada, nota-se que às suas costas há uma frase de boas vindas, algo que destaca seu caráter materno, pronto a acolher qualquer filho desgarrado; outro momento curioso encontra-se na sequência em que Sandro faz amor com uma jovem, e, por meio de um corte entre tais cenas, se insere um plano onde os dois comem pizza aos pés da cama, algo que se opõe ao almoço familiar do pastor e a mãe adotiva de Sandro, ressaltando, assim, a diferença de postura entre as figuras femininas em relação ao casamento e à vida familiar.

Respeitando o percurso linear da narrativa e criando efeitos de causalidade na sucessão dos fatos, Barreto faz uso de uma montagem próxima do documental televisivo, com vários cortes e saltos temporais, utilizando-se, para isso, de transições muitas vezes inventivas entre os planos, como na sequência em que Sandro passa de menino a homem, apenas em um movimento de câmera que enquadra e posteriormente se afasta de um cobertor. No entanto, tentado a marcar redundantemente os primeiros saltos temporais do filme, o diretor incorre em uma transição apressada e deselegante nos primeiros minutos de projeção, apresentando duas datas diferentes em dois quadros sucessivos.

Tais problemas em relação aos aspectos técnicos poderiam ser vistos como pecadilhos, caso o filme não apresentasse tamanha falta de entrega do elenco, que se restringe à estereotipia do linguajar dos morros cariocas, não convencendo o público e nem a si mesmos do caráter dramático e mesmo violento que tal linguagem possui.
Última Parada 174 não é um filme que se aprofunda em questões políticas, institucionais e socioculturais como seus antecessores (Cidade de Deus e os Tropa de Elite), tornando uma abordagem temática do longa a partir desses vieses uma experiência superficial e por vezes vazia de argumentos contundentes que justifiquem verdadeiramente as ações e destinos das personagens. No entanto, considerando alguns elementos temáticos recorrentes no longa, percebemos que a trajetória de duas personagens centrais, mãe e filho, constituem, na relação entre si, uma interessante e comovente representação do sentimento de orfandade e impotência do ser humano frente à degeneração do seio familiar e à desumanização causada pela sociedade do poder e da violência.

Barreto apresenta na primeira cena do filme os principais eixos temáticos que permearão toda a narrativa, estabelecendo os elementos dramáticos que irão constituir o passado traumático das personagens e que irão motivar as ações de cada uma delas ao longo da narrativa: entre a realidade miserável da favela e a realidade idealizada da TV se coloca uma mãe amamentando seu filho. Nesta curta cena inicial, estabelece-se um importante movimento de identificação entre as personagens: da mulher que carrega vícios e estigmas de uma vivência degradante passa-se em seus poucos passos à imagem da mãe, que se rejubila na prática materna do aleitamento, atendendo às suplicas de sua criança faminta. Temos, neste quadro delicado e profundo, a união plena das relações identitárias entre mãe e filho. O materno, representado na figura da mãe, simboliza o lugar primeiro de existência, fonte de alimento, refúgio e proteção contra um mundo exterior, estranho e opressor.

Dando continuidade à cena, tem-se a inserção de uma terceira personagem no quadro dramático: a figura masculina do traficante, que surge como elemento externo, representando, dentro do espaço familiar, a violência e a repressão de uma sociedade pautada no poder e na força. Pela ação autoritária e desastrosa do traficante se estabelece a dissolução do quadro materno, a separação traumática de mãe e filho, levando ambos, fragmentados, a errarem por caminhos tortuosos e confusos em busca da metade perdida que os concerne, o que nos remete a uma busca pelos sentimentos de completude e felicidade tantas vezes negligenciados em um meio degradante e persecutório.

Após esse início promissor, acompanhamos o desenrolar da história de (Alê)Sandro, cujo nome dado pela mãe fragmenta-se após o afastamento da mesma. A trajetória de Alessandro tem como pano de fundo a realidade marginal dos morros cariocas e suas escolhas não o conduzem para um destino diferente do de muitos meninos como ele. Porém, sua trajetória adquire força dramática na representação de uma busca redentora pela superação do sentimento de orfandade. Desde os primeiros acontecimentos até seu desfecho, a vida de Sandro mostra-se permeada pela violência e pela traição de figuras masculinas que atravessam seu caminho. É tocante perceber que Sandro procura vivenciar, mesmo que furtivamente, com todas as mulheres que cruzam seu caminho, o vínculo primário perdido, buscando sempre o aconchego do ventre feminino: em cenas como a que Alessandro recai sobre o corpo da mãe adotiva morta a facadas; aconchega-se no colo de sua namorada após o rompimento do namoro; ou quando pede desculpas à mãe, após uma noite muito difícil.

Facas e copos adquirem, no procedimento de construção dramática das imagens, fundamental função representativa do masculino e do feminino, respectivamente, materializando na imagem o processo simbólico pelo qual passa Sandro, importando-se com a fragilidade do vidro e negando a lamina cortante das facas, num processo castrador de quebra das suas pontas e de investigação das cicatrizes que estas lhe deixaram.

E por fim, tem-se nos últimos 10 minutos de projeção, a sequência que tornou conhecida a personagem Sandro do Nascimento. Encerrando de forma coesa e coerente o arco dramático construído pela personagem durante a projeção, vemos Sandro, após romper com a namorada, motivado pela traição masculina (agora de seu “pseudo-irmão” bastardo, seu duplo mais violento), percorrer as calçadas da Candelária, onde passara parte de sua infância e juventude, e, numa última busca por refúgio e proteção, adentrar o fatídico ônibus 174. Oscilando entre as panorâmicas do ônibus e as cenas do interior do mesmo, a sequência final sintetiza a interessante relação de Sandro com o vínculo materno perdido. Simbolizando um espaço intra-uterino de proteção e isolamento do mundo exterior, o ônibus passa a representar para Sandro um último amparo frente à violência e abuso de poder que parte da sociedade lhe impingiu durante toda sua vida. Não à toa é um homem que sai do ônibus e o denuncia, e mais tocante ainda, é sua última tentativa de busca do feminino, mantendo apenas mulheres no interior do veículo.

No entanto, a sociedade lhe exige uma retratação, exige que saia do conforto e do refúgio materno, exige que encare sua condição social, todo seu passado e enfim, todos os desenganos de uma existência repleta de grandes sofrimentos e pequenos milagres, onde facas são pontiagudas e copos frágeis podem se quebrar. Num sufocante plano final, a ficção toma de assalto a realidade, e, nós, espectadores, partilhamos da mesma sepultura, escuridão total, onde Sandro encontra finalmente seu último refúgio, com a mensagem de morte vinda de fora, em um som seco e dolorosamente pesado.

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