Olhares em números

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Comentário Crítico: "Harry Potter e o enigma do príncipe"


Acredito que a bem-sucedida franquia cinematográfica Harry Potter chega, com este 6º filme, ao mesmo nível técnico e estético já alcançado pela brilhante franquia de mesmo gênero audiovisual: a trilogia O Senhor dos Anéis.Por AINDA não ter lido os livros de J. K. Rowling, abstenho-me de discutir os aspectos de adaptação da obra literária para o suporte cinematográfico. Pretendo privilegiar uma discussão sobre as características cinematográficas deste 6º filme, sendo estas originais e complementares à leitura da obra literária. Pautando-me, também, nos outros filmes da série, prefiro comentar a produção cinematográfica de Harry Potter independentemente de seus livros, obviamente porque não os li, mas pensando, também, que qualquer adaptação constitui a transcriação ou recriação original de um conteúdo temático utilizando-se de um novo suporte e todos seus artifícios. Ou seja, não vamos desconsiderar a Arte do Cinema, mesmo quando esta Arte toma conteúdos literários como suporte narrativo.
Assim como ocorreu com o 3º livro, o 3º filme da série, Harry Potter e o prisioneiro de Askaban, marcou uma mudança de postura dos realizadores, deixando de lado a abordagem quase infantil do mundo mágico de Harry Potter, vista nos dois primeiros filmes. Desde o filme dirigido pelo cineasta Alfonso Cuaron (E sua mãe também e Filhos da Esperança), a série tem se mostrado envolta por uma atmosfera fria e sombria, marcada pelos tons acinzentados das paisagens externas e pela névoa que espreita os arredores de Hogwarts; o clima de conspiração e temor tornou as ações das personagens mais urgentes e perigosas, obrigando os protagonistas a amadurecerem mais rapidamente, o que significa, para cada um dos heróis, enfrentar os próprios traumas, medos e anseios da infância e adolescência.Harry Potter e o enigma do príncipe marca o momento de maior maturidade desta nova postura. Consolidando um estilo próprio de composição cinematográfica, este 6º filme da série apresenta, em sua padronizada estrutura narrativa[1], uma contundente solidez e coesão no desenvolvidos das tramas centrais e, principalmente, na construção das personagens, o que se mostra um ponto forte deste 6º filme.O filme tem início com uma incrível seqüência de ação na qual alguns bruxos do lado negro, os temidos comensais da morte, saqueiam e destroem lojas do Beco Diagonal, incrustado no centro de uma metrópole “trouxa”, deixando para trás presságios da catástrofe que poderia se abater sobre o mundo “trouxa”, caso você-sabe-quem determinasse uma invasão maciça a esse mundo.A partir desta primeira seqüência, o filme desenvolve-se sempre surpreendendo pelo extremo apuro técnico em sua montagem e edição de efeitos especiais, e constrói seqüências de tirar o fôlego, como a “última” viagem de Dumbledere e o passeio destrutivo de Helena Bonhan “Belatriz” Carter pelo salão principal de Hogwarts, no último ato do filme. Com um estilo ágil de filmagem, acompanhamos a câmera sempre se esgueirando por entre os corredores da escola. Podemos apreciar planos muito bem construídos, que valorizam a disposição das personagens em cena e a primorosa direção de arte, que, por sua vez, se mostrou capaz de transpor para o espaço físico toda desordem e devastação próprias do momento de conflito entre as forças do Bem e do Mal (destaque para a colorida loja dos Weasley, em contraste com o que resta do Beco Diagonal; e os inúmeros artefatos misteriosos da Sala Precisa).A própria arquitetura da casa dos Weasley, os bairros londrinos e principalmente Hogwarts, com suas salas, pátios, paredes, portas e janelas, mostraram-se eficientes para a condução da narrativa, criando em muitos momentos, a partir de excelentes movimentações de câmera e de enquadramentos bem explorados, ricas metáforas para os conflitos psicológicos vivenciados pelas personagens. Alguns aspectos me chamaram particularmente a atenção: no primeiro momento em que Harry Potter vislumbra Gina, ela está no andar superior da casa dos Weasley, e a arquitetura da casa permite observar a forma de torre vista por Harry, com Gina lá encima (sim, estou pensando nos Contos de Fadas), se tornando ainda mais interessante uma vez que a relação entre os jovens se dá nesta questão de descoberta da sexualidade e de encantamento dos hormônios (atenção para a cena em que a “inocente” Gina se depara sozinha com um bruxo [lobisomem?], lembrei-me do lobo mau); podemos observar como as vidraças emolduram os casais apaixonados nas torres de Hogwarts; gostaria de destacar também os planos em que Draco Malfoy aparece solitário e marginal, e que produz uma tocante rima visual com a sempre rica metáfora do pássaro engaiolado[2], muito bem incorporada e motivada na composição narrativa do filme.Todos os planos e seqüências, em conjunto com o trabalho cenográfico, são pincelados na tela por uma primorosa direção de fotografia, que, como já mencionei, realça em tons de cinza os ambientes sombrios e inóspitos dos arredores de Hogwarts. As tonalidades frias ressaltam, com a chuva e a atmosfera nublada, a presença constante do Mal, e contrastam com os poucos lugares acolhedores para os protagonistas, como a quente e aconchegante casa dos Weasley e os quartos de Hogwarts.Assim como na trilogia O Senhor dos Anéis, aparece neste filme, ainda mais presente como um personagem secundário, um céu constantemente turbulento, e pontualmente composto por traços explícitos do Mal (na figura nuviosa de uma cobra ou crânio). Algumas das cenas de maior impacto emocional do filme dão-se tendo o tenebroso céu acinzentado como pano de fundo (comentarei algumas delas mais abaixo).Finalizando alguns apontamentos sobre os aspectos técnicos deste 6º filme, não posso deixar de ressaltar o brilhante uso do plano contra-plongée[3] no último ato, quando Harry confronta-se com Snape e este se impõe sobre ele, criando um plano arrebatador, extremamente significativo para a as circunstâncias do enredo, evidenciando um grande Mal que se prostra frente ao Bem momentaneamente impotente (atentem-se para a casa em chamas ao fundo, me fez lembrar uma impressionante cena de Os Sete Samurais, de Akira Kurosawa). Estas composições técnicas definitivamente coroaram o excepcional trabalho do diretor David Yates. Apostaria em Harry Potter e o enigma do príncipe como forte candidato às categorias técnicas do Oscar 2010: direção de fotografia, montagem, edição de efeitos visuais e sonoros, etc.Enfim, cabe agora um breve comentário sobre o desenvolvimento de alguns personagens e de algumas tramas centrais, que poderíamos considerar como principal fator para a plena maturidade cinematográfica da série, alcançada neste 6º filme.Realmente, depois de seis filmes convivendo com as mesmas personagens, tanto os expectadores da série nos cinemas, quanto os próprios atores, sentem-se confortáveis e preparados para compreenderem as nuanças de comportamento dos jovens personagens.Daniel Radcliffe (Harry Potter) esmera-se cada vez mais em sua interpretação, dando certa densidade psicológica à personagem, porém ainda não aprofundada (mas este aspecto depende necessariamente da construção da personagem no texto original), aponto como destaque a ótima inversão de comportamento de Potter, após tomar a poção oferecida pelo professor Horácio Slughorn, oferecendo alguns momentos de alívio cômico com suas expressões debochadas e irônicas, mas sempre integradas à motivação da trama. Emma Watson (Hermione) destaca-se neste capítulo da série, proporcionando, para cenas que tratam de seu amor por Ronnie, uma interpretação sensível e apaixonada, desconstruindo sua postura sempre firme e racional (lindíssima a cena em que se encontra sozinha, envolta por passarinhos mágicos, produzidos por sua magia e lágrimas).Harry Potter e o enigma do príncipe desenvolve interessantemente dois personagens com fortes contornos trágicos: Draco Malfoy (Tom Felton) e Alvo Dumbledore (Michael Gambon).Malfoy é arregimentado pelas forças malignas de lord Voldemort, e a ele é imposta a ardilosa tarefa de trazer para Hogwarts os mais temíveis comensais da morte, além de, no último ato, ser impelido a matar Dumbledore. Draco, assim como Harry, é jovem e ainda incapaz de sustentar tal fardo, sofre com o peso da família patriarcal, partidária das forças do Mal, e impõe a si mesmo a reclusão e, consequentemente solidão. Como um pássaro engaiolado, mergulha num triste conflito interno, dividido entre dois lados inconstantes de sua consciência, o Bem e o Mal (reparem na cena em que a personagem aparece com metade do rosto encoberto pela sombra de uma parede; e também em como ele reage quando vê um pássaro morto, possivelmente identificando-se com a condição do pobre inocente). Draco Malfoy representa um tocante questionamento de como a imposição do destino e das tragédias adultas marcam profundamente a personalidade de um adolescente em formação, forçado a amadurecer rapidamente. Sustentando brilhantemente os contornos trágicos da personagem, Tom Felton talvez encarne nos próximos capítulos uma das personagens mais interessantes do mundo adolescente de Harry Potter.Mas é por Alvo Dumbledore que choramos ao fim da projeção, e cabe a ele tomar para si um dos mais temidos fardos da existência humana, o envelhecimento e a morte. Realmente, é cômica e debochada a atitude de Dumbledore ao encontrar, numa casa “trouxa”, revistas de Crochê; no entanto, tal atitude será sempre retomada indiretamente, em vários momentos em que ele mesmo ressalta sua velhice. É tocante percebermos que assim como para todos os “trouxas”, a velhice e suas excentricidades chega também para todos os bruxos. Dumbledore representa muito bem este momento, apresenta-se mais afetivo para com Harry e também mais contemplativo, como que vislumbrando o mundo pela última vez (emocionante e significativa a cena final de sua morte, quando o sol se põe no horizonte, a suas costas).A morte de Dumbledore é construída ao longo da projeção. Particularmente no quarto ato dá-se o processo final, a trajetória final de Dumbledore e sua última aventura. Os indícios de seu sacrifício são ricamente delineados nas cenas que seguem à avassaladora tomada panorâmica dos rochedos frente ao mar turbulento (salientando a pequenez dos protagonistas frente ao Mal que se impõe sobre eles). O sangue derramado por Dumbledore, no lugar de Harry, privilegia possíveis conotações sagradas de sacrifício (a questão do martírio é retomada de forma dramática quando o sábio mago pede água à Harry, e este não pode atendê-lo); o pequeno lago que atravessam utilizando um barco possui clara alusão ao rio dos mortos da mitologia; a própria questão da travessia é símbolo da mudança e da provação; e a espetacular tomada em que Dumbledore salva a si mesmo e Harry pela última vez já é suficiente para o impacto dramático do conseqüente desfecho trágico da personagem.Após a morte de Dumbledore, segue-se, na minha opinião, uma das cenas mais emocionantes da série até aqui: circundando o corpo inerte de Dumbledore, bruxos sensibilizados com o sacrifício do mestre erguem suas varinhas num último alento, envoltos por muita dor e pesar, e buscam entre as nuvens escuras e tenebrosas do Mal, um traço de luz e de esperança.Creio que me estendi por demais nesta crítica, e mesmo assim, não tratei de todos os aspectos que gostaria de tratar. Gostaria de assinalar ao menos para uma outra rica metáfora, também pertinente para a evolução psicológica de alguns personagens nestes últimos episódios da série: o aquário sem água, que deve se encher novamente. Lembrando do derradeiro pedido de Dumbledore: água/esperança/vida.Fechando a crítica, acredito que este último filme da série é seu melhor exemplar. Adotando uma postura mais crítica e inventiva quanto ao seu processo adaptativo (do livro para as telas), Harry Potter e o enigma do príncipe esbanja primor técnico e várias sutilezas de filmagem, acrescentando à obra fílmica um elevado padrão de qualidade cinematográfica. As tramas centrais foram muito bem conduzidas e sustentadas pelo bem preparado e talentoso elenco, que trouxe dinamismo à série, em ótimos momentos dramáticos. Acredito que as explicações para alguns motivos associados às tramas centrais e secundárias virão nos próximos filmes, ou serão apenas sugeridas, numa adaptação cheia de elipses, que ao tomar certas liberdades conscientes, só acrescentará ao universo mágico da literatura de J. K. Rowling o que o Cinema pode oferecer de melhor, como este brilhante filme, cinco estrelas.

[1] Grosso modo, teríamos o primeiro ato ambientado no mundo dos trouxas, o segundo ato já em Hogwarts, primeiro semestre de aulas; terceiro ato com o retorno das férias e as peripécias que levam ao desfecho; quarto ato corresponderia ao desfecho; e a conclusão dar-se-ia num quinto ato.[2] Vejam O Grande Ditador, de Chaplin; O Grande Truque, de Christopher Nolan; e Swnney Todd, de Tim Burton.[3]. “Quando a câmera se encontre abaixo do rosto da personagem, o plano é chamado de contra-plongée. O principal objetivo deste tipo de plano é evidenciar características psicológicas dos personagens ou evidenciar situações nas quais esses personagens se encontram, como a câmera se situa abaixo do rosto do personagem, este aparece engrandecido pela imagem, o que transmite a sensação de superioridade, paternalismo, força, grandeza ou altivez.”

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