Olhares em números

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Os motivos simbólicos na narrativa de "O Labirinto do Fauno"



Retomando meu post anterior sobre o filme O Labirinto do Fauno (Galera, este filme é tão rico de significados! E este ensaio é só uma leitura possível), pretendo justificar meu posicionamento quando me referi à necessidade de contaminar os sonhos e fantasias de Ofélia com a dor e o sofrimento do “mundo dos humanos”. Os contos de fadas são para o inconsciente infantil o equivalente à mitologia para os adultos. É através desses contos, oriundos das lendas populares de tradição oral, que crianças compreendem o próprio contexto no qual estão inseridas, e encontram, inconscientemente, motivações lúdicas para seus próprios medos, desejos e incertezas. Após a fixação escrita dos contos de fadas, amplamente divulgados na literatura por meio dos livros dos irmãos Grimm e de Charles Perrault, a indústria do entretenimento vem subvertendo valores caros à infância, desde Walt Disney (à exemplo, a inclusão irrelevante de nomes estereotipados para os anões na versão animada de A Branca de Neve, prejudicando a focalização da narrativa) a diretores contemporâneos, viciados pela predileção vulgar à piadas adultas e conotações sexuais explícitas retiradas dos filmes adolescentes e inseridas nos filmes de temática infantil. Em O Labirinto do Fauno notamos a progressão segura e comoventemente respeitosa das motivações infantis que estruturam a trama. Ofélia se mostra, desde o inicio, atrelada aos livros de contos, e quando passa a enxergar a natureza, depois de encaixar a pedra-olho em seu lugar de origem, percebe que somente nos livros de fadas encontrará as explicações para os seres e fenômenos que a perseguem, passando a ter (conceber) o Fauno como mentor para os mistérios da natureza. Este mesmo motivo, da importância do livro como combustível de imaginação, é retomado quando Ofélia recebe do fauno um livro que lhe revelará os caminhos que deve percorrer, e também ao transformar, por meio da ilustração de uma página de um de seus livros, um inseto em fada. A partir daí, notamos o respeito de Guilhermo del Toro a este encantamento pueril, ao jamais permitir que um adulto vislumbre toda a fantasia que permeia as ações da menina. O diretor, por sua vez, utiliza-se dos sonhos de Ofélia para emoldurar o principal elemento motivador da trama: a necessidade do retorno à existência intra-uterina como forma de fuga do ambiente hostil e terrivelmente doloroso causado pelas guerras totalitaristas e a morte de inocentes. Daí as inúmeras referências ao útero materno, desde a gravidez de Carmen, mãe de Ofélia, aos aspectos visuais como a entrada do labirinto, a cabeça do fauno, as manchas de sangue no livro, e a impressionante composição uterina reformulada ao se colocar um bebê mandrágora dentro de um recipiente banhado por leite, e alimentá-lo com sangue. Evidente que pouca relevância teria os aspectos visuais se o texto não os motivasse. Ofélia não resiste ao contexto histórico que a sufoca, e com toda sua inocência e virtuosismo adentra as mais profundas manifestações do seu inconsciente, a fim de cumprir as tarefas dadas pelo Fauno e assim ter permissão para regressar ao reino subterrâneo (segurança intra-uterina). Já podemos perceber a relação intrínseca da vivência real da criança com a sua própria motivação lúdica. À exemplo, a cena em que Ofélia chega à mesa do Homem-Pálido e o desperta ao comer frutas de sua ceia: sua mãe a havia proibido de jantar. Ou quando, vestida como Alice (mas em tons que já antecipam uma natureza fria e densa), penetra a cavidade suja e lodosa de uma árvore apodrecida, símbolo atual e urgente para a natureza destruída pelas atitudes mesquinhas dos homens (pertinentemente representados pelo enorme sapo asqueroso e consumista). Após testemunharmos inúmeras ações cruéis protagonizadas por homens como o Capitão Vidal, cuja obediência cega a um governo fascista acaba deixando-o, como uma engrenagem, áspero e inexorável, assumimos a condição de espectadores de um comovente desfecho, em que a realidade crua e desumana contamina o universo de fadas de uma criança e as consome com brutalidade. Embalados por uma belíssima canção de ninar, emocionamo-nos com o final de Ofélia, capaz de derramar o próprio sangue a fim de preservar a vida de um inocente, comprovando assim sua pureza e virtude, permitindo-se, em um último alento, regressar ao seu reino encantado. Direito de toda criança. Percebo, na conclusão de O Labirinto do Fauno, uma simbolização final para toda uma série de motivos religiosos presentes no filme, cujo principal argumento acredito que transitaria entre a fé cristã no paraíso eterno. No entanto, prefiro minha leitura, pautada na literatura infantil, em que, como Dorothy em O Mágico de Oz, Ofélia mostrou-se capaz de possuir os sapatinhos de rubi, que a mantiveram segura e inocente enquanto caminhava pelas estradas de tijolinhos amarelos da imaginação, até que a realidade humana consumiu sua infância.

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