Olhares em números

terça-feira, 18 de agosto de 2009

O sublime e o infame na união do feminino e masculino em "Perfume: a história de um assassino".

*continuação ao comentário crítico publicado logo abaixo.
Seguimos abaixo com uma breve leitura da narrativa de Perfume, buscando principalmente evidenciar a possibilidade de interpretação da trama como uma alegoria da relação do ser humano com os arquétipos femininos e masculinos que constituem sua personalidade e sua ontologia enquanto ser socializável.
A natureza humana, comum a homens e mulheres, comporta, em sua constituição psíquica, características arquetípicas relacionadas ao que chamamos de feminilidade e masculinidade. Segundo o estudioso de mitologia Joseph Campbell, o feminino guarda virtudes e perigos como: a maternidade, a sedução, a malícia, a vingança, a irracionalidade, a beleza, o encanto, a sensibilidade, etc.; enquanto o masculino abarca: a belicosidade, a proteção, a força, a justiça cruel ou complacente, o egoísmo, a racionalidade lúcida, a criatividade, a frigidez e a insensibilidade, a moralidade sóbria, etc.[1] Esses dois princípios, feminino e masculino, inerentes à estrutura da personalidade humana devem permanecer em equilíbrio, tanto no convívio do ser humano individual quanto coletivo. No entanto, desde séculos antes de Cristo, o masculino se sobrepôs ao feminino, subjulgando-o e marginalizando-o. O homem, assumindo plenamente os caracteres masculinos e reprimindo os femininos, impôs a submissão à mulher e a criança, cujo vínculo com o feminino é mais recente e intenso.
Na narrativa de Perfume, presenciamos o nascimento de uma criança em pleno mercado público, espaço onde desfila a miséria de uma sociedade estratificada e mesquinha. A podridão e a insalubridade do lugar despertam o bebê, cujo olfato mostra-se aguçadíssimo. Destituído do vínculo materno de forma brutal, a criança, ao chorar, acaba sendo responsável pela morte da própria mãe. Tal morte recai sobre uma mulher que se negou a assumir um dos arquétipos principais do feminino: a maternidade. O olfato apurado faz de Jean-Baptiste Grenouille um ser humano ávido pelos aromas do mundo e com profundo discernimento dos componentes da realidade que o cerca: uma Paris setecentista, berço do recente Iluminismo, onde se encontra o microcosmo da civilização européia da época e imperam plenamente os valores masculinos de poder e racionalidade sóbria e moralizadora.
As primeiras mortes que permeiam a trajetória do protagonista recaem sob personagens que de certa forma ocupam estratos sociais marcados por traços masculinos, como a frieza, a violência, o egoísmo e a insensibilidade, tornando os episódios indícios da perniciosidade do masculino potencializado no meio social.
Grenouille, em certo momento de sua formação, percebe que sente mais do que suas palavras podem exprimir. Tal característica não é tão extraordinária, uma vez que todos nós sentimos muito mais do que podemos expressar linguisticamente (uma das funções da poética na linguagem é justamente oferecer a possibilidade de significar os sentimentos).
Esta sua qualidade natural, porém, irá levá-lo a identificar o singular aroma de uma jovem, e é a partir da lindíssima e trágica cena, em que Grenouille, sôfrego, tenta absorver o odor efêmero do corpo nu da jovem já morta, que se revela um dos principais motivos dramáticos que irá conduzir a personagem até o desfecho da trama: a tentativa de preservar o aroma feminino.
Jean-Baptiste empreende uma busca particular por algo que percebe tão sublime quanto efêmero. Podemos pensar em Grenouille como um rapaz que busca possuir o que lhe falta, o que tanto deseja é como algo que lhe foi tirado. Sob uma perspectiva freudiana, temos uma personagem que sofre com a inversão do complexo de castração. Um homem, cujo feminino se atrofiou por influência da brutalidade do meio, e que procura inconscientemente possuir este feminino perdido.
Em um de seus primeiros contatos com ricos perfumes franceses, Grenouille conhece o famoso perfume Amor e psique. E, uma vez sentindo-o por toda a cidade, questiona sua qualidade, dizendo não ser um perfume muito bom.
Eros e Psique são personagens da mitologia grega, que personificam respectivamente: o “amor”, em sua extensão de paixão ardente e desejante, e a “alma”, no sentido grego de “sopro de vida”, representando também o princípio de alma, a qualidade da vida que se transforma. A estória de Eros e psique aparece pela primeira vez na comédia O Asno de ouro, de Apuleio, e narra a trajetória de um amor impossível, entre um deus e uma jovem mortal. Psique era uma donzela tão bela que foi capaz de despertar a fúria da deusa Vênus, que manda seu filho Eros (ou Cupido) castigar a jovem inocente. No entanto, Eros acaba apaixonando-se por Psique, e utilizando-se de um estratagema, leva-a para sua morada, a fim de desposá-la em segredo. Nem mesmo Psique sabia quem era seu marido, e num rompante de curiosidade, traindo a confiança de Eros, transgride a interdição que lhe impusera o belo esposo, descobrindo sua imortal beleza. Psique é abandonada por Eros, e passa por várias provas para reencontrar-se com seu amado e conseguir a imortalidade. Essa estória, de Eros e Psique, dramatiza a possibilidade de transcendência da alma quando impulsionada pelo sentimento do amor. Somente sob a influência do amor imortal, Psique conseguiu superar seus imperfeições mortais.
Ao reformular o perfume criado pelo artista (assim são nomeados os grandes perfumistas da época), Grenouille questiona a própria natureza falha e imperfeita da natureza humana, negando-a, e oferecendo à sociedade da época inebriantes perfumes, que atuam eficazmente como um simulacro de sensações aromáticas, que se originam da combinação de essências naturais como folhas e rosas, que se deixam morrer conservando o aroma intacto.
A grande “virada” na narrativa de Perfume dá-se a partir da primeira essência aromática extraída do corpo de uma prostituta. O aroma exalado pelos corpos femininos pode ser capaz de serenar o espírito mais exaltado e subordinar a alma mais racional. O perfume produzido com o aroma das jovens donzelas oferece a Jean-Baptiste Grenouille o poder de dominar os homens. A forma metódica com que retira o odor das jovens, semelhante a uma espécie de ritual pagão, revela certo culto ao corpo feminino, cuja nudez mantém-se velada em magníficos enquadramentos que retomam o tratamento dado a representação feminina nos quadros renascentistas, e que aludem à extraordinária beleza venusiana.
As vítimas de Grenouille denunciam a submissão do feminino nas diversas estruturas e instituições sociais: a prostituta; a noviça, encontrada morta, despida de seus hábitos, logo após o discurso inflamado de um bispo; camponesas e moças de baixa classe; e donzelas de classe alta, forçadas a casamentos arranjados e submetidas a um patriarcalismo despótico, lembrando também, que a proteção em excesso é característica de um masculino potencializado.
Jean-Baptiste, quando inquirido sobre o motivo de ter matado as jovens, revela ter-lo feito porque fora necessário. Assumindo pra si o peso de uma masculinidade exacerbada e confusa, Grenouille se apresenta como profeta de um sagrado feminino, da feminilidade ausente e negada pelo homem e pela sociedade dos homens. É sagrado o que é transcendente, avidamente esperado e cultuado pelos seres humanos. O desfecho da narrativa traz uma paradoxal cena final: numa praça do séc. XVIII, onde eram feitas execuções publicas de condenados, espaço de dor, flagelação e morte, Grenouille oferece aos homens o sacralizado aroma colido de belas jovens, o feminino ausente como algo imanente aos homens é ritualisticamente reincorporado por todos, homens e mulheres; a barbárie se esvai, e os extremos de um paradoxo se dialogam, temos o sublime e o infame despolarizados, a orgia concretiza a transcendência humana por meio do amor. Por um arrebatador instante de vida, os habitantes daquela cidade comungam a união entre o masculino e o feminino.
Após uma longa trajetória de experiências, Grenouille compreende que jamais experimentou a união a qual observou naquela praça. A perda de seu próprio odor e a inconsciente busca pelo odor da jovem ruiva, que encontrara numa noite, significam, para a construção da personagem do jovem perfumista, a incapacidade de amar e ser amado. E em um triste desfecho, em que se chocam extremos da natureza humana, Grenouille cobrindo-se do feminino, é consumido por um povo assolado pela miséria do mundo. Seu sacrifício, algo que faz unicamente por amor, assim como Psique, traduz o encontrou ontológico do feminino e masculino através de uma alma transcendente.



[1] CAMPBELL, J. Creative Mythology. In: JOHNSON, Robert. A. Feminilidade: Perdida e reconquistada. São Paulo: Mercuryo, 1991. p. 11.

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