Olhares em números

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Comentário Crítico: "Onde os fracos não têm vez"



Onde os fracos não têm vez, ou melhor, No country for old men, é um filme episódico, factual, em que uma série de acontecimentos particulares, desencadeada pela ação de um homem, revela o estado atual de toda uma sociedade. Peculiarmente filmado pelos irmãos Coen, o roteiro não pretende apenas contar a história de um homem que encontra uma maleta de dinheiro sujo, mas estabelecer um parêntese no curso real (apenas na economia do filme) dos fatos ocorridos no deserto dos Estados Unidos naquele período (década de 80). Acho importantíssimo considerar o título original, que numa tradução intuitiva seria algo como: “sem (não há) lugar (pátria) para homens velhos”, e a partir dele, relevar uma constatação implícita pouco esperançosa da personagem de Tommy Lee Jones (xerife Bell), quando este diz que a idade pode simplificar o homem. Na verdade, seu tom desiludido e nostálgico revela certo mal da velhice: achar que as coisas eram melhores antigamente, quando (para ele) não era preciso empunhar armas para fazer valer a lei. Com uma trama conduzida de maneira sutil, não voltada para prolixos esclarecimentos acerca dos motivos do enredo, e preocupado com as nuanças psicológicas das personagens, o filme pode parecer não conclusivo, e até seu final um anti-clímax para uma expectativa de desfecho justo ou mesmo vingativo (elementos catárticos), construída na mente do espectador. Mas é justamente indo contra este maniqueísmo-cinematográfico que o filme se singulariza, e impressiona. Com um elenco competente e um trabalho primoroso de marcação cênica (impossível não nos afligirmos à composição insana do assassino fazendo sua primeira vítima, já nos primeiros minutos de projeção), os irmãos Coen não privilegiam apenas as personagens protagonistas na construção dos diálogos. Algumas cenas de absurda tensão e impacto dramático dão-se entre protagonistas e coadjuvantes, acrescentando a cada seqüência do longa um tratamento bilateral dentro do universo diegético do enredo (não só as personagens principais têm algo a acrescentar à trama). Mas, logicamente, são essas personagens principais que, ao cumprirem uma longa trajetória no árido deserto existencial criado por Mccarthy (autor do livro que deu origem ao filme), e padecerem sobre seus vícios e virtudes, sustentam a carga emotiva do filme. Josh Brolin encarna o trágico Llewelyn Moss, um pobre texano que, ao caminhar pelo solo seco do deserto onde acabara de ocorrer uma chacina entre traficantes, encontra uma maleta cheia de dinheiro, e decide ficar com ela. É após um breve momento como caçador, que Moss passa a ser a caça, tornando-se alvo de implacáveis empresários do narcotráfico mexicano e estadunidense. No entanto, seu verdadeiro algoz chama-se Anton Chigurh (percebam a ironia do diálogo em que o nome de Chigurh é mencionado e erroneamente interpretado como Sugar, açúcar em inglês. O sujeito é realmente um doce.). Javier Bardem (já colecionando prêmios merecidos pelo papel) encarna Chigurh de forma viceral, trabalhando com perspicácia a natureza metódica do assassino psicopata. Suas cenas inicial e final completam um resumo cíclico do processo de mitificação de sua personagem. Anton aparece como um lobo do homem. Acima da lei (ele literalmente a estrangula, metaforizando seu primeiro assassinato no longa), e adverso até à eminência da morte certa (cena final do acidente), Chigurh personifica uma crueldade universal, um julgamento moral tácito, latente na alma de todo ser humano: morrerá pelo acaso, por suas escolhas, pelo erro dos outros, ou terá sorte? Cada personagem morto por Anton Chigurh aceitou uma dessas escolhas. Se o diabo é Anton (vide o símbolo do capô de seu carro, no perfeito plano-sequência quando chega ao motel), o xerife Bell é um anjo caído. Lee Jones entrega com talento à personagem o peso insustentável da velhice. Decidido a encontrar Moss e protege-lo de Chigurh, Bell passa por uma desilusão cada vez maior, ao assistir à violência impune dos criminosos (drama criminal em qualquer nação da contemporaneidade). Não são apenas diálogos e silêncios (muito bem empregado nesta projeção, diga-se de passagem) que constituem o espetáculo em Onde os Fracos não têm Vez. Os aspectos técnicos do longa cadenciam todos os motivos inseridos no roteiro. A direção de arte impõe uma geografia seca e rústica, onde nem mesmo uma sombra aos pés de uma árvore parece segura. As ruas, becos e quartos de motéis enriquecem a perigosa solidão e o constante medo. O figurino assume um peso simbólico ao tornarem-se motivações dinâmicas no contexto diegético (as leituras possíveis que podemos ter a partir das trocas de camisa entre os protagonistas e jovens garotos). A edição de som prima por assimilar o caráter orgânico da composição de cada cena (os sons emitidos pelos atores e objetos cenográficos compõem uma trilha por si só). E a engenhosa fotografia que, por meio de sombras e da contraluz em vãos de janelas e portas, criando um universo de contrastes, ressalta ao olhos o mistério e o temor contido na alma de cada personagem (inesquecível o fade out que antecipa a morte de Moss). Como disse no início, Ethan e Joel Coen filmaram a tragédia de um homem para falar de todos os outros. Somos homens, que sentados em frente à tv todos os dias, vislumbramos as desgraças, o ódio e o preconceitos da sociedade. E como Churgh, Moss ou Bell, que puderam ver nela, desligada, o reflexo de uma janela aberta, em que um maravilhoso horizonte de esperança se descortina, podemos constatar que não passamos de sombras em um mundo real, sem forma definida, frutos do acaso. Lá fora, depois daquela janela está um mundo justo. Mas, infelizmente, ainda estamos acordados na realidade.

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